Há uns dois anos, se tanto, comecei a publicar nesta mesma “Revista Será?” uma sequência de crônicas nomeadas inicialmente “Diários do Pina”. Aos poucos, as crônicas saíram do Pina, chegaram ao Carnaval e passearam pela cidade, de formas que achei mais apropriado nomeá-las “Crônicas Sociais”. A febre escrevinhadora era tão forte, que criei um blog, “momentear”, de curta duração.
As crônicas, quais ensaios, deram lugar a um outro escrito muito mais trabalhoso. As madrugadas do Pina, um de meus cenários privilegiados, foram “ficcionadas” na nova empreitada.
Depois de botar um filho no mundo, a gente carece de resguardo, até esquecer o trabalho que deu parir, após o prazer de gerar. Pois bem, hoje volto ao Diário do Pina no seu formato original de crônica. Estou de resguardo. Só trabalhinhos leves.
Retomei as caminhadas, que andavam um tanto esquecidas por quase todo o primeiro semestre deste ano, que passei morando mais no Brejo de Gravatá do que no Recife. Inicialmente, no calçadão. A estabilidade do solo é melhor para minha pobre coluna vertebral, que andou reclamando da vida ultimamente. Hoje, porém, às 4:50 da madrugada, vi que o mar estava secando. Embora o sol ainda não houvesse nascido, já trouxera o início da claridade da manhã. Em passos lentos, atravessei a Avenida Boa Viagem, com a sensação de quem sai de uma área conflagrada para um território de paz.
Gosto de caminhar observando os outros, o bom dia de quando acontece o encontro de olhares. No calçadão, isso é menos frequente. Às vezes porque a conversa está animada, quando são duas ou mais pessoas. Pego fragmentos dessas conversas. Se são homens, caminham na mesma prosa de uma mesa de bar, assuntos do mundo fora de casa: futebol, política. Já as mulheres, assuntos de mulher: os filhos, os netos, as intrigas – a conversa miúda, da casa, da vizinhança. Será por isso que as mulheres vivem mais do que os homens?
O fato demográfico da maior longevidade feminina não é novo. Analisando-o em um árido artigo com tabelas e gráficos, Elza Berquó o nomeou com um belo título: “Curva da Solidão”. (Desculpem, não vou citar o artigo, como manda o figurino. Com a internet, encontra-se tudo. Ou quase).
Desviei de rota. Retomo. Enquanto caminho, sozinha, sem música, sem conversa, gosto de espiar os outros. Do bom dia de desconhecidos. No calçadão, esse cumprimento não chega a trinta por cento das pessoas com quem cruzo. Ou estão entretidas na prosa, ou concentradas na atividade de caminhar ou correr, seguindo prescrição médica. O rosto contraído. Às vezes até o corpo, os braços contidos, como quem toma um remédio para a saúde, por obrigação. (Estou exagerando de propósito).
Mas hoje, atravessando a avenida, o calçadão, o jardim de coqueiros e castanholas (na metade plantado pelos moradores dos prédios) e plantas rasteirinhas próprias das areias salobras da beira-mar, chego, primeiro, à terra fofa, e, depois, à terra batida, com marcas do trator que limpou a areia na véspera, e dos primeiros pés de gente, de cachorros e de pombos. O Pina é privilegiado. Com o mar seco, semelha terras de um deserto. E acontece o milagre, que não é da multiplicação dos peixes: o mar é tão soberano que faz sumir o trânsito, o barulho dos motores. E os caminhantes, poucos, às cinco da madrugada, todos, cem por cento, se dão bom dia. Mesmo os que correm.
Caminho na direção das jangadas. Lembro cenas de “Cheiro de Velame” como se tivesse acabado de ler um romance de outrem (Ops! Um merchandising saiu sem eu querer, no calor da escrita), com os pescadores nesse mesmo cenário, em 1954. Por uma feliz coincidência, sai uma jangada ao mar. Com o mesmo ritual daquele de 1954. E de antes. E de antes … A diferença são as velas, que vão deitadas, suporte de segurança, assim como os remos, que impulsionarão apenas os primeiros movimentos da embarcação, antes de entrar em cena o motor a diesel. Aquela jangada levará os pescadores às mesmas ruas e avenidas do mar que conhecem de pai para filho.
A segunda feliz coincidência é que, logo parei para os primeiros alongamentos, próxima às jangadas, aparece, saindo de dentro do mar, a bola vermelha, poderosa. Bebê, inocente, sorrindo, ainda nos permite, por não mais que dez ou quinze minutos, olhar sua cara frente a frente. A aurora. Feminina. Antes que feche a cara, encandeando quem quiser encará-la. Os de Vidas Secas sabiam disso.
Num dos alongamentos, o mais eficiente, viro de costas para o mar, para a jangada empurrada pela equipe de terra, e vou dobrando a coluna vertebral, puxada pelos braços, desde o pescoço até o cóccix, até as mãos encontrarem o chão. Vejo então o mar, as ondas, a jangada, os pescadores, de uma ótica inusitada e bela: de baixo para cima. O caminhar das pessoas toma outro ritmo, como dançassem. Depois desenrolo a coluna no sentido inverso, do cóccix à cervical, alongo os braços. Pronta, alinhada para continuar o passeio. Sim, porque caminhar na areia da praia, mesmo a passo rápido, mesmo correndo, é passeio e não obrigação. Até os cães estão mais felizes, sem coleira.
O único som que chega da avenida é a voz de tenor do motoqueiro evangélico das 5:30, pontualmente, todos os dias úteis da semana; pregando a palavra de Deus em hinos de igreja. Fosse em New Orleans, os hinos seriam mais bonitos. Cumprimenta efusivamente, com o braço levantado, todos os que fazem o mesmo para ele, do calçadão. Poucos. Esse homem certamente terá um dia de trabalho melhor do que os colegas de labuta que terão enfrentado a guerra diária do transporte público, correndo o risco do assalto às carteiras e aos celulares. Da areia da praia, não distingo a letra, apenas a melodia de tenor pobre.
Pronto, meu dia principiou.
PS: 24 de outubro, antes de remeter a crônica ao Conselho Editorial, acrescento. Seguindo hoje a mesma trilha de ontem, ao passar pela castanhola Emília e pelo coqueiro Josué, que plantei em 2017, quando já estavam definidos o primeiro perfil dos dois personagens principais de “Cheiro de Velame”, um dos quais então se chamava Emília, quis que assim fossem batizados, tal como os outros, com o nome escrito com tinta preta num pneu vazio pintado de branco. Os demais terão os mesmos nomes de quem os plantou. Pois bem, vi que tinham jogado um plástico amarradinho, cor de rosa, dentro do pneu onde cresce Emília, que já está uma mocinha, maior do que eu. E até já dá sombra. Que merda! Era merda mesmo, de cachorro, cadela por certo, pela cor rosa. Proteção do meio ambiente, da limpeza das praias? Antes deixasse a bichinha fazer suas necessidades ao pé da planta. Não é o melhor adubo, mas sempre serve. Na volta, bastou atravessar a avenida e já encontrei uma lixeira para colocar. Mas a culpa é de Bolsonaro. Como antes era de Lula. Ah, como é reconfortante ter um bode expiatório…
Que prazer ler sua crônica. Motoqueiro evangelista nunca acontece por estas terras bostonianas…