Teresa Sales

“Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.”

Ernest Hemingway, O velho e o mar. Civilização Brasileira, 1992.

 

Daqui a cem anos. Das praias do Recife e Jaboatão, terá sobrado o Pina e Barra de Jangada. Da grande castanhola que separa o Pina de Boa Viagem, até Piedade, Candeias, o mar terá sido cercado de pedras para conter o oceano. Os tubarões reinarão absolutos. O valor dos imóveis terá baixado. Alguns, abandonados, símbolos de uma civilização.

E os estudantes de Ciências Sociais escreverão teses sobre o século XXI. Os cineastas farão filmes, alguns de terror; sobre o confinamento dos ricos e a miséria dos pobres. As pegadas do edifício envidraçado em Rayban que não recebe a brisa do mar, terão avançado nas ruínas do que um dia foram casinhas feias em ruas desordenadas, teimosas. Terão sobrado algumas, preservadas como museu histórico dessa mesma civilização.

Todos nós, leitores desta revista, estaremos mortos.

Havia nesse tempo um velho que morava no calçadão. Seu nome de pia era Elias. Magro, altura mediana, corpo firme para seus sessenta e cinco anos. Magno, o empregado da barraca de coco, a segunda barraca na direção das outras praias, tratava-o simplesmente por velho. Já ninguém se lembrava, nem o próprio velho, do ano em que ele veio morar no Pina, chegado de Belém do Pará.

A mulher do sétimo andar, que gostava de acordar de madrugada e observar a vida pela janela de seu apartamento, caminhando nas ruas e no calçadão, anotou no dia 28 de março de 2017. Era um sábado. A noite da sexta feira se despedia preguiçosamente às 4:15. Vestiu-se para sair: biquíni, shortinho, tênis. O chapéu e os óculos escuros na mão. Saiu com a única certeza de que, naquela madrugada, em algum momento, o dia ficaria claro. O sol poderia se atrasar um pouco, a depender das nuvens que haviam trazido a chuvinha fraca da madrugada, quando ela abriu a janela do quarto.

A essa hora, atravessou tranquilamente a avenida. Anteviu que o velho ainda dormia na sua cama, recebendo a mesma brisa fria da madrugada que jogava seus cabelos para trás. Seus passos não o despertaram. Depois de curta caminhada pela areia do mar, a mulher do sétimo andar sentou-se na última jangada, depois do bom dia aos pescadores. E ali presenciou a luta diária do sol com as nuvens que querem espichar a noite.

O mar ainda estava misterioso, escuro, sem suas cores em azul marinho e verde esmeralda. No quebrar das ondas, via o rendado branco que elas bordam na areia. Chegava aos seus ouvidos, mais alto que a conversa dos pescadores, a melodia do quebra mar e do vento menino, que não sossega em sua azáfama de correr e levar recados.

Sete madrugadas após esse dia, a mulher do sétimo andar observou, da janela de seu apartamento, a rotina do velho. O calçadão ainda estava deserto, a avenida silenciosa. O teto do quarto era um plástico negro, do mesmo tipo que os militantes do MST usavam em seus acampamentos. Com uma diferença: a cobertura era baixa, da altura de dois carrinhos de supermercado que amarravam o plástico de um lado, o alambrado do campo de futebol do outro. Os colchões, papelões dobrados, juntos, semelham uma cama de casal. Não são. Dois homens dormem debaixo de um teto improvisado pelo plástico preto. Um deles, mais novo, sai primeiro de baixo do teto.

Está vestido de bermuda, camiseta preta desbotada e um casaco de malha surrado por cima. Sandálias havaianas gastas. Atravessa a avenida sem pressa. Leva na mão um copo de plástico. Enquanto isso, o velho sai de baixo do mesmo teto, segurando na mão um saco de plástico verde. Pelo alongado do saco, são roupas. Seu guarda roupa é móvel fácil. Pendura o saco verde de plástico num toco de galho do pé de castanhola, sua sala de estar.

Espreguiça-se. Traz então do chão as folhas de papelão que serviram de cama. Agora, serão almofadas na sala de estar, em sua cadeira sem recosto. Aqui passará o dia. Terra é a cor de sua bermuda e camisa. Por isso ele se mistura, como aquelas esperanças nas folhas verdes, com as cores dos tijolinhos do calçadão, do banco de cimento, dos troncos dos três pés de castanhola que lhe darão sombra durante o dia. Para os passantes do calçadão, em passo rápido, em corrida, conversando, ele é parte dessa natureza construída pelos urbanistas. Para alguns poucos, é alguém.

O negro – ele é negro – que havia atravessado a avenida com um copo de plástico na mão, retorna com o mesmo copo. Entrega ao velho. O copo esvaziado vai para trás do banco em que o velho está sentado. As raízes das castanholas lhe servem de balcão para guardar louça e comida. Com menos pressa do que bebeu, o velho acende um cigarro – o primeiro do dia, depois da primeira branquinha. O melhor. O estômago vazio, o trago, o sonho. A essa hora, o calçadão ainda é escasso de gente. O velho está sentado na ponta do banco, com o pé esquerdo bem pousado no calçadão e o direito em cima da parte mais baixa do cimentado, junção entre os bancos que formam um contínuo ao longo do calçadão. Escora o cotovelo no joelho da perna direita e segura o queixo na mão. E pensa.

Não olha para o mar, o velho. De onde está, avista Brasília Teimosa. Seu dia acaba de começar com dois prazeres: a bebida e o fumo. O resto, a vida proverá.

O negro, com quem compartilhou o mesmo teto para dormir, já saiu para trabalhar de catador de latinhas. Para isso servem os carrinhos de supermercado. Deixou o velho ao primeiro gole. E deixou também a cama por fazer. São 6:30 da manhã, o calçadão cada vez mais cheio dos caminhantes, vizinhos do outro lado da avenida, das ruas de trás da avenida, de Brasília Teimosa e até de outros nortes. Lentamente, o velho caminha de volta para o quarto. Desamarra, com cuidados para não rasgar, as pontas do plástico que lhes serviu de teto. Dobra em dois, em quatro, em oito dobras bem feitas. Guarda em um dos carrinhos, que já contém outras peças de seu guarda roupa e as últimas latas recolhidas à noite. Leva o carrinho para embaixo dos pés de coração-de-negro, o outro nome que se dá às castanholas. Busca o outro carrinho e traz para a mesma sala de estar. Acende mais um cigarro, enquanto no calçadão vai crescendo a procissão, que naquele dia começara mais tarde, “porque hoje é sábado”.

Um rapaz sai da pista de ciclismo e, pedalando, vem em sua direção. Apeia-se, arrodeia com a bicicleta em volta dos bancos, pela areia batida, ajeita-a junto aos dois carrinhos de supermercado. Volta a se sentar junto ao velho. A posição do corpo dos dois não indica uma conversa, mas um confessionário. Ou melhor, um consultório de análise. O moço fala. O velho ouve e mantém seus olhos distantes, na direção de Brasília Teimosa. Vez em quando fala palavras em monossílabos. Ou assente com a cabeça em aprovação. Da  janela, a mulher do sétimo andar acompanha a sessão que dura o tempo certo: quarenta e cinco minutos. Depois da consulta, o jovem deixa, junto à bicicleta, a bermuda, a camiseta e as sandálias, enquanto vai dar um rolê pelas praias. Receberá, o velho, um trocado pela guarda das roupas e bicicleta. A consulta foi de graça. Assim, o velho terá sua primeira refeição, um salgado do barraqueiro, que acaba de abrir a barraca de coco. Quiçá, a segunda dose.

Passa uma carroça retardatária. O condutor para. Um dedo de prosa. Outros já passaram, “bom dia, velho”, sem tempo para conversas. O tempo esquenta. Às 10:30 o velho tira a camisa de botão, guarda no saco plástico verde e fica só com a camiseta de dentro, amarela, listas verdes dos ombros à manga, número 10 da seleção brasileira. Sem medo de ser roubado, deixa a sala de estar e os carrinhos, ao ouvir o grito do barraqueiro, “veeeelho!”. Anda, quase correndo. Terá um mandado e, quem sabe, um prato de comida em paga. A hora do almoço está chegando.

Por estar no rés do chão e não ter nada a perder, o velho carrega consigo um tesouro: está fora das duas pragas que tomaram conta daquele século: o Medo e o Sistema. Não terá contas a pagar nem objetos a comprar. E nunca ouvirá um atendente lhe responder: “Agora não, meu senhor, que o sistema está fora do ar. Volte outra hora.”

Uma moça branquinha, de cabelos tingidos de louro, leva o cachorrinho de raça para passear todas as tardes, quando larga do trabalho. Deixa frutas e algo mais que faça as vezes de um jantar. O velho faz uma graça com o cão. Um jeito de agradecer à moça, que talvez volte no dia seguinte. Ela encontrou assim, no seu caminho para passear o filho de quatro patas na praia, um jeito de cumprir o mandato de amar ao próximo como a si mesmo.

São 20:40 quando o velho e o dono do outro carrinho de supermercado armam o quarto de dormir. A barraca de coco ainda está aberta, a bola rolando no campo de futebol, e alguns passeando pelo calçadão, que se transforma em praça de lazer, “porque hoje é sábado”.

PS: O velho e os pombos na próxima.