Paulo Gustavo

“Unveiled” by Eric Cox ou anatomia da intolerância.

 

Eles passam, a literatura fica. Eles serão página virada, a literatura será página lida e transformadora. E qualquer omissão será lenha nessa fogueira de ódio, e de vaidade também. Até porque há uma vaidade em se proclamar purificador do mundo. Afinal de contas, quem não sabe?, a literatura é uma espécie de sujeira das letras. Metáforas, ficções, imagens, ambiguidades e reflexões deixam as pessoas inseguras, instilam o veneno da dúvida. Todos passam muito bem sem literatura. Os livros têm muito texto, muitas palavras ocas. Palavra oca é um perigo para as pessoas e sobretudo para os jovens e estudantes.  É preciso uma desbastada nisso. Façam umas listinhas para suspender essa balbúrdia nas escolas.

O governo de Rondônia saiu na frente. São Paulo, a locomotiva, saiu atrás. Mas de norte a sul e de leste a oeste, zelosos servidores da pátria amada estão de olho nos livros. Não hesitarão em recolhê-los em prol da paz, do bem e dos bons costumes da sociedade. A literatura é uma droga pesada demais para circular assim, leve e solta, pela sociedade. Nem imaginam nem veem, como observou o crítico alemão Ernst Curtius, que a literatura ocidental é uma única e prestigiosa instituição desde Homero, mesmo não sendo um mero reflexo da base material da sociedade, como o próprio Marx um dia constatou. Nademos no raso, nada de também lembrarmos a visão heideggeriana de que poetas e pensadores são vizinhos, etc., etc.

A literatura está na mira do alto clero bolsonarista (desculpem a expressão, uma contradição em termos). O pessoal quer cortar o mal pela raiz, tudo muito simples e muito prático. Mas, se ela está na mira, é sinal de que você, leitor, leitora, também está, assim como os autores, as editoras, os livreiros. Mas o que se poderia esperar da escória? Nem verniz ela tem; sua epiderme, pela própria natureza, atende pelo nome de “casca grossa”. Nada de bom pode vir da ignorância militante. O brilho é para as botas. Algum sinal de inteligência? Então, me deixem dizer como disse o crítico literário Agripino Grieco: esse brilho é a faísca da ferradura na calçada…

Sob essa mira feroz e obscurantista sobre os livros, podemos sentir todo o ódio dos totalitarismos à literatura (não obstante, a perseguição aos livros ser anterior e milenar a esse triste invento político de nosso tempo). Primeiro proíbem, censuram; depois tocam fogo, e a assepsia está completa. Estamos aqui longe de Castro Alves (“Oh bendito o que semeia livros…”) e perto do pesadelo de autores como Freud e Proust, queimados por metonímia em praça pública. Mas nada melhor do que um dia atrás do outro com o século 20 no meio. O que a escória brasileira deseja acrescentar ao terrível e já visto filme do século passado? A sensação de que voltamos no tempo e de que andamos em círculos já se tornou um clichê. Millôr Fernandes teria visto o monstro: “Quando uma ideologia é velhinha, ela vem morar no Brasil”. Mal abrimos a boca pra sorrir da tirada, e a pólvora de cada dia nos sufoca.

A questão é dolorosa e pungente: será que não sabem o que fazem? Sem Cristo e sem Sócrates, podemos responder que, por um lado, sim, sabem muito bem; por outro lado, não. Como quer que seja, a literatura em si não precisa de defesas (embora haja várias!). Ou talvez precise, pois seu potencial de liberdade reduz o autoritarismo ao que ele é: a gestos vis e mesquinhos, a moinhos falidos que não podem triturar para sempre o trigo da criação humana.