Olhar fixo na tela. O semicírculo roda e não para. Não há com quem falar, não há para quem reclamar. Tudo agora é aplicativo. Sinto-me um inútil. Fiz algo errado? Poderia ter ido por outro caminho? A irritação cresce e o dia fica extremamente amargurado.
Não podemos sair de casa. A recomendação é de que não encontremos gente. E, se encontrarmos, ficar distante, não se aproximar. Racionalmente entendo a determinação e respeito, mas no coração dói muito. Leva a um processo de separação que vai se aprofundando.
Não gente e aplicativos, os mantras da época que vivemos. Temos que aceitá-los.
Os aplicativos são meu maior desafio e minha maior rejeição. Não sei e nunca gostei de manipulá-los. A dificuldade começa na sua obtenção. Minutos de angústia, em que senhas e um passo a passo, sempre dito simples pelos outros, para mim se tornam um tormento. Fico nervoso ao ver rodando um ícone por minutos intermináveis. Mas essa fase eu supero.
O ruim é mesmo sua aplicação. Como todos se ancoram nesses dispositivos, ficam sobrecarregados e dificilmente conseguimos entrar e o que queremos. A depressão aumenta e a inutilidade também, além de não ter com quem reclamar. A máquina não pode ser “xingada” ou “esmurrada”. Nem virtualmente. Resta gritar bem alto, para nós, puta merda.
Desci um aplicativo de supermercado. No primeiro acesso funcionou maravilhosamente. Na semana seguinte fui utilizá-lo e a dois dias dá que está sobrecarregado de pedidos. Nada posso fazer. Nem um telefone que há no site responde. Não existe nenhum gerente para dar uma desculpa esfarrapada. A alternativa que tenho é sair de casa para comprar, proibido pela Organização Mundial da Saúde, ou continuar sofrendo na frente de meu celular.
Resolver problemas bancários é outro problema. Não existe mais aquele cafezinho agradável, nem a pergunta de como estão os filhos e netos. As aplicações vão desaparecendo no ar e nosso gerente de relacionamento nunca está disponível. Guardei para a aposentadoria, mas, parece, o vírus também corrói finanças. Não consigo me localizar nas mudanças diárias de humor de um tal de Mercado que não sabemos onde se localiza e o que realmente o move.
A impessoalidade dos processos me angustia. Não tenho a quem me queixar ou mesmo reclamar de absolutamente nada. Este mundo vai nos afastando das pessoas e nos juntando a máquinas. E elas fazem o que querem, me parece.
Teremos que conviver com isso, sem cheiros, sem abraços, sem cafezinhos, sem botequins. O mundo cibernético exige preparação e os que não foram treinados para isso estão fora.
Solidão e tristeza são a tônica. Já prevista pelo poeta e “vidente” Evaldo Gouveia em seu magistral Bloco da Solidão:
“Angústia, solidão
Um triste adeus em cada mão
Lá vai, meu bloco vai
Só deste jeito é que ele sai
Na frente sigo eu
Levo um estandarte de um amor
Amor que se perdeu
No carnaval
E lá vou eu também
Mais uma vez sem ter ninguém
No sábado e domingo
Segunda e terça-feira
E quarta feira vem
O ano inteiro é todo assim
Por isso quando eu passar
Batam palmas para mim
Abraham,
Sua crônica descreve com muita sensibilidade as dores e os problemas que estamos vivendo.
Adorei!?
Fátima
Um prazer receber resposta de você de Portugal. Cuide-se muito. Saudades grande.
Muito bom, amigo.
Seu confrade de padecimento…
Abraço
Grande amigo
Até nisso estamos juntos
Vem com leveza e sensibilidade a sua angústia. Lindo texto.
Obrigado. Estímulo para continuar escrevendo
Muito bem querido Tio. A situação é dificil mesmo e a dificuldade da interação digital exclui muitos desse mundo novo (longe de maravilhoso).
Eu sempre adorei essas coisas online, apps e coisas do tipo mas entendo que o mundo não estava pronto para essa substituição tao abrupta das relações pessoais e sociais.
Tenho visto o esforço de todos em transferir seus encontros para o mundo virtual (de musicos fazendo lives com cache virtual a amigos fazendo churrasco por Zoom) e vejo que apesar de no inicio isso trazer um alento e até uma animação, não resolve nada em um prazo mais longo. Imagina nao irmos mais pro boteco e ficarmos em casa tomando com a TV ligada na live.
Enfim, é o que temos para o momento. Tentar lidar com isso e apostar nossas fichas que a surrada ciencia nos trará de volta um pouco do mundo que tinhamos. Ta dificil prever qual será o tal do “novo normal”.
Grande abraço
Vela reflexão. Nossas diferenças quabto ai digital são claras. Mas, no boteco, nas sua flauta, nos encontramos.
Muito bom. Parabéns!
Obrigado
Grande amigo. Até nisso estamos juntos.