Marco Aurélio Nogueira

“Finding a new future” Marlene Dumas, Mamma Roma, 2012. Private Collection © Marlene Dumas.

Com a epidemia se alastrando em ritmo feroz, prospectar o futuro tornou-se desafiador, mesmo que no médio prazo. O esforço para que a vida siga em frente, com a normalidade possível, depara-se com uma espessa cortina de fumaça, que cega e desorienta. Ficou mais complicado planejar o cotidiano, o desespero e o pânico começam a despontar, corrosivos. Não é diferente na política ou na economia: os atores sofrem para desenhar seus passos e movimentos.

A esta altura, não há como saber o que nos reserva 2020. É de esperar que as eleições municipais transcorram, para o bem da democracia, mas é impossível antever quais serão os candidatos, como se travará o debate entre eles e, sobretudo, com que ânimo os cidadãos irão às urnas. Todos os cálculos estão prejudicados, partidos e candidatos precisarão fazer uma reflexão profunda e elaborar ideias que traduzam o novo quadro político-social, econômico e sanitário que se abriu inexoravelmente.

Como muitas coisas na vida ocorrem por vias tortas, o principal impacto da epidemia já se manifestou. Sua maior expressão é o isolamento político-institucional de Bolsonaro, engolido pelo cordão de ódio que o asfixia, pela inépcia administrativa e pela tentativa frustrada de manipular a desgraça em benefício próprio. O presidente tornou-se um personagem que caminha à deriva de seu governo, conspirando contra ele próprio. Depois de um primeiro tempo patético e irresponsável, cujo ápice foi o discurso rancoroso do dia 24/3 – sim, aquele em que tachou a Covid-19 de “gripezinha” a que ele, com “histórico de atleta”, estaria imune –, o presidente ameaçou recuar, provavelmente pressionado pelos militares que o cercam e que devem ter percebido que o capitão não obedece nenhuma hierarquia e turva a imagem que as Forças Armadas imaginam ter na população.  Percebeu-se que ele é uma ameaça ao País, seja porque não ajuda a que se combata a epidemia, seja porque exaspera uma sociedade que está a um passo do pânico.

O recuo durou pouco. Bolsonaro é um bólido desgovernado, tangido por assessores desqualificados e tão ou mais alucinados quanto ele. Não é um ser propriamente racional, ainda que tente jogar o jogo da política. Sua autossuficiência, seu despreparo, a cólera que armazena no peito o impedem de mudar com sinceridade. O reenquadramento surtiu algum efeito no discurso do dia 31 de março, mas não há qualquer garantia de que o velho Bolsonaro de sempre não volte a irromper na cena pública. O que existiria de Dr. Jekyll em sua persona foi sempre sobrepujado pela presença amoral e inescrupulosa de Mr. Hide, que lhe domina o corpo, a mente e o espírito. Difícil imaginar que Jekyll consiga se livrar da desgraça que o acometeu e que ele, com o tempo, passou a apreciar.

Ao presidente ora chamuscado restará a porta da mobilização social. Poderá ter algum sucesso nisso, mediante o uso das redes sociais, a exploração do desespero popular e a manipulação do ressentimento e do irracionalismo de parte de seus apoiadores. A cegueira fanática dos bolsonaristas é um repto à democracia, ao Estado, à sociedade civil e à civilidade. Eles não serão derrotados com facilidade, precisarão ser reeducados, tarefa que se arrastará por um longo período. Permanecerão como uma pedra no caminho, a boicotar as providências que terão de ser tomadas para que os efeitos mais danosos da epidemia sejam mitigados e o País volte a funcionar. Mesmo que percam em 2022, o caldo de cultura que os alimenta continuará a ser produzido. Só será contido se transformações profundas ocorrerem e se os democratas se engajarem em uma batalha cívica duradoura.

O eventual sucesso mobilizador de Bolsonaro não lhe garante um futuro risonho. Para isso, seria preciso fixar um vetor no sistema institucional, formar uma maioria no Congresso, ter um partido para operar, obter a adesão militar incondicional. Caso contrário, restaria a aventura autoritária, com quebra da legalidade, para a qual ele não parece reunir forças. A opção golpista, além de ter alto custo, não contaria com uma justificativa razoável, pois não há, no País, qualquer “agitação” significativa. Seria o próprio presidente e seu núcleo duro a criarem um conflito social contundente, mediante a aposta numa revolta da população contra as medidas sanitárias e as diretrizes dos governos estaduais e municipais. A criação do caos é um recurso sempre empregado pelos autoritários, mas não é algo simples de ser produzido quando não se dispõe de ferramentas associativas estáveis e de apoios institucionais consistentes.

O presidente, seus filhos os assessores que partilham com eles o fanatismo ideológico regressivo parecem convencidos de que terão de amargar o papel de “vítima” dos interesses que acreditam contrariar (os políticos, o globalismo, a esquerda, a imprensa). Continuarão a explorar essa narrativa, levando-a ao paroxismo. Caminharão, porém, na beira do precipício.

Um segundo impacto da epidemia é sobre o movimento democrático.

Já há indícios de que algo está a acontecer, eppur si muove, em que pese o silêncio constrangedor dos partidos mais à esquerda, que se limitam a fazer a “desconstrução” retórica do “mito”. Lideranças desses partidos precisariam romper com a malha de ressentimento, confusão e passividade em que se encontram, digerir a derrota de 2018 e partir para o construção de um novo patamar de atuação, fazendo o que deixaram de fazer quando a situação os beneficiava, ou seja, buscar a unidade e a articulação com os democratas.

O impacto encontra sua melhor tradução atual no reforço do protagonismo do Congresso, das lideranças e dos partidos mais equilibrados, digamos assim, de centro. Por essa via, poderá haver um importante estímulo para que as forças democráticas (liberais, social-democráticas, centro-direita, esquerda moderada) encontrem um eixo programático de articulação, seja para que se administre a situação corrente, seja para que se planeje o futuro no médio prazo. Essa possibilidade de articulação será o principal antídoto contra o acirramento das relações institucionais e sociais.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios pouco considerados pelos gestores que predominaram nas últimas décadas. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável precisarão prevalecer como diretrizes a serem seguidas pelos governos. A pressão dos democratas será fundamental para que as coisas caminhem nessa direção.