Fernando Dourado

Paris, hoje.

Quando fiquei na mesma cidade 100 dias consecutivos? Quando dormi 100 noites na mesma cama pela última vez? Quando acordei com a mesma paisagem à volta, tendo como uma única diferença a intensidade da luz que vinha de fora? Com absoluta certeza, e sem medo de errar,  isso deve ter acontecido há meio século, lá pelos meus 10 anos, no Recife. Mesmo assim, duvido seriamente porque sempre tinha uma escapada no horizonte – nem que fosse a Garanhuns, com meus pais. O que pude concluir de experiência tão inusitada? Que o ser humano se adapta a tudo. Que enquanto houver vida, haverá esperança. Que a reclusão vicia e, em dado momento, o mundo aberto provoca sensações ambíguas, inclusive de medo. Que a vida interior é um antídoto ímpar contra o tédio – que, aliás, não conheci hora alguma. Que um dia quando falar sobre esse período, será com alguma saudade. Que Paris foi mera figurante de luxo e que, estando onde estiver, eu me viro bem comigo mesmo da porta para dentro.

Outro recorde à vista. A última vez que fiquei 100 dias sem pegar um avião foi em 1977, lá se vão pois 43 anos. Deles tampouco tenho sentido falta, talvez porque ainda não veja outro canto no mundo onde quisesse estar. Bem ou mal, me sinto seguro aqui em Paris. Acredito na boa-fé das autoridades quando discutem o tema da pandemia e acho que medidas drásticas poderão ser tomadas se houver indício de um recrudescimento sério do vírus. Do que sinto falta no Brasil? Do inverno em São Paulo, basicamente. De pessoas, sinceramente, de ninguém, salvo pelas farras de cerveja com dois jovens amigos. Nas demais rodas, impera o ódio político e o fanatismo mais absurdo. Pouco afeito ao que os cânones consagram como debate democrático, especialmente com quem disso não tem noção, meu isolamento social no Brasil seria total. Antes de sair de São Paulo, até o fanatismo religioso me circundava. Minha recusa em ir ouvir a Monja Coen me valeu sério ressentimento. Pode uma coisa dessas?

Não que estejamos imunes a isso por aqui – seja por redes sociais seja ao vivo, nas raras interações que acontecem. Semana passada fui gravar um “live” num programa bem conhecido, e lá cheguei cheio de preocupações. O que me esperava? Quem me esperava? Que cariz político tinha o produtor? Depois soube pela apresentadora que a preocupação deles era a mesma vis-à-vis o entrevistado. Temiam que eu fosse “bolsonarista” – o que quer que isso signifique. Disse que tinha tido mãe e pai conhecido; comido 3 vezes ao dia e frequentado boas escolas. Assim, não tendo sido criado na zona, dificilmente poderia ser adepto do famigerado capitão. Chegamos a um ponto tal de necrose de convívio que especulamos de mil formas sobre as pessoas antes mesmo de conhecê-las, de forma a evitar más surpresas. Nunca se testou tanto a temperatura das águas antes de dar um mergulho. É claro, isso se aplica também ao chamado outro lado, aos encastelados no outro extremo do espectro político.

Com o naufrágio mais do que anunciado do projeto (sic) do capitão, em renovado episódio a evidenciar que o poder no Brasil é, desde há muito, um permanente caso de polícia, milhões de opositores desta triste figura se perfilam para apontar o dedo para quem não votou no candidato do PT, como se o “eu não disse?” investisse-os de enorme  superioridade moral. Como se não houvesse milhões de brasileiros que não votaram em nenhum dos dois candidatos, e como se o Brasil não fosse ter seríssimos problemas de governabilidade se Haddad tivesse ganhado. Devagar com o andor. Hoje como ontem, a opção de muito homem e mulher de boa vontade se baseia sempre no mal menor. Paris, é óbvio, não está imune a essa dicotomia muito embora de pouco valham suas manifestações em favor de um lado ou de outro. Que ocupem esplanadas ao pé da torre Eiffel, o efeito é mais que nada midiático – como pretendem seus desafetos. O que conta mesmo é o diapasão que dá o tom aí na banda Brasil.

Voltando à cidade, é reconfortante constatar que certas coisas se tornaram mais domésticas, logo mais aconchegantes. Peguem-se os restaurantes, por exemplo. Privados da receita fácil que lhes davam milhões de turistas de bolsos cheios e anemia de critérios, haja reinvenção. Para capturar a preferência do exigente consumidor francês, não basta enrolar crepes e vendê-las a dois dígitos, porque ninguém aqui vai pagar isso. Tampouco montar menus espertalhões e contar com a benevolência sem fim de quem acha que em Paris, até comer mal e pagar caro é bom. Como se isso, de alguma forma, agregasse à mística da cidade. Logo sendo você daqueles parisienses natos ou por opção, e que estão com a cidade a seu serviço, há razão para discreto contentamento, que ninguém nos ouça. O mesmo vale para a visitação de jardins, museus e monumentos. As filas estão reduzidas a um décimo do que eram. Tenho certeza de que chegou afinal a hora de os franceses conhecerem sua capital.

De ontem para hoje, contudo, tem me ocorrido que se tivesse que ser outro animal que não um homem, queria ser um hipopótamo – para o que não me falta sequer certo physique du rôle. Isso porque as temperaturas de mais de 30° representam para mim o maior dos castigos. A vontade que dá é a de ficar submerso na água, só com a cabeça de fora, até a pele engelhar. Não é que não tenha vindo a Paris nessas últimas décadas no verão. Mas as circunstâncias eram bem outras. Na maioria das vezes, vinha só por alguns dias e ficava em locais com refrigeração constante. Agora é bem diferente. Sem nenhum horizonte de volta ao Brasil, e ainda cheio de incertezas com respeito à possibilidade de deslocamento aqui mesmo na Europa, a perspectiva das temperaturas madrastas até setembro me aterra e tira o sono – que já não anda tão bom quanto foi nos meses de março e abril, quando as temperaturas ainda eram de um dígito durante praticamente toda a noite. Agora temos 28° à meia-noite. Un enfer. 

Paris é outra cidade, digamos assim. Na verdade, lembra muito a velha Paris, mas não é a mesma coisa. Como explicá-lo melhor? Ora, o lado negativo é que muitos locais não estão reabrindo com o fim das medidas restritivas. Isso significa que foram a pique ou que os proprietários decidiram que não valia a pena continuar na atividade. As placas de aluga-se estão por toda parte e há de se supor que, mais adiante, os estabelecimentos reapareçam repaginados, mais em linha com os novos tempos. Mas isso, é claro, desidrata a seiva nutriente da cidade que é o comércio e o consumo – por mais que nos mantenhamos afastados desses fundamentos. É evidente, contudo, que há um lado muito bom nessa nova paisagem. Com as proibições ainda em vigência, a cidade é poupada da louca predação dos turistas que tudo invadem e oneram. Estamos mais para Lutécia do que para a cidade que nos acostumamos a ver, com hordas de orientais sobraçando sacolas de grifes caras nos Grandes Bulevares. .

Ontem foi um dia perfeito para beber. Aliás, diria até que tomar o pifão que tomei era inevitável. Primeiro porque tudo o que fui fazer na rua deu errado: uma troca de livros no bouquiniste, uma sessão de compras sem inspiração no supermercado, e uma imperdoável distração fez com que eu passasse direto pela padaria que estava procurando. Em outras palavras, eu estava desconectado. Era o calor. Então, lá pelas 7 horas, pedi o primeiro chope. Foram 2,5 litros, o que é bem razoável – cinco “pints”. À hora do jantar, estava com muita fome, é claro. Comi salame húngaro com páprika e uma lasanha simplesmente divina, que tinha comprado numa rôtisserie do bairro que prima pela qualidade, pela antipatia dos atendentes…e pelos preços salgados. Para acompanhar, é claro, vinho branco. Lá se foi a garrafa toda e mais um pouco de outra, mas as conversas ao telefone do depois foram várias e divertidas, algumas até emocionantes. A meu modo, saudei o solstício à maneira escandinava.

Falei de Vassily Grossman, da Armênia, da amizade, de meus dias em Erevan, dos passeios pelas ruas arborizadas de Tbilisi, das incertezas quanto ao futuro e feliz, ainda meio alto, curti as delícias do novo ventilador alemão que entrou em operação. Hoje não foi fácil engrenar vida nova. A vontade que dar é de voltar ao bar e pedir mais uma cerveja. Mas aí viraria esculhambação. Para merecer outra, tenho que produzir um bocado. Mas antes que ataque o trabalho, quero terminar de ler os diários de Sándor Márai, este extraordinário escritor húngaro que discorre com despojamento e elegância sobre o que foi a Hungria entre 1944 e 1948. Poucos temas me interessam tanto no momento. Gostei de lê-lo descrevendo a desfaçatez dos integrantes do Partido da Cruz Flechada entretendo os russos em 1945, com a mesma servidão com que o faziam com os nazistas em 1944. Conheço famílias no Brasil que são assim. Puxam o saco de quem está por cima com uma desfaçatez digna de Delfim Netto. Mas sem o brilho dele.

Comovente também é Márai descrever o bate papo com a soldadesca soviética – tadjiques, ucranianos, uzbeques e russos  – que invadiram sua casa à procura de nazistas escondidos. Impressionados com os livros e a máquina de escrever, mostraram-se reverentes quando ele disse que era escritor. Perguntado se conhecia os autores russos, ele enumerou alguns deles e os soldadinhos ficam encantados. Perguntaram-lhe se a casa onde estavam era própria. “Não, é alugada”. Então o mais extrovertido deles disse que se ele morasse na Rússia, teria uma datcha e todas as regalias do mundo para escrever. Porque na Pátria-Mãe os escritores eram sagrados. À saída, um deles pediu-lhe uma cópia do carbono com que ele datilografava o novo livro. “Queria levar de lembrança desse encontro.” Outro disse que se um dia ele quisesse ir escrever na Rússia, podia ficar na casinha dele à beira do Volga. Passariam bons momentos. Como tem coisas divinas o ser humano, volta e meia. E pensar na torpeza que nos cerca.

Ao cabo do centésimo dia consecutivo em Paris, ouço no rádio que há ameaças de retrocesso no front da Covid. De Portugal, um amigo escreve. “Primeiro culparam o Norte. Agora é Lisboa que está a portar-se mal. É parte de nossa tradição: começamos bem mas sempre terminamos mal”. Por outro lado, pelo pouco que conheço desse mundo, muito além das vaidades em jogo, estão os imensos interesses comerciais e financeiros no breakthrough que significaria a descoberta da vacina. Não acredito, sinceramente, que as informações relevantes estejam sendo compartilhadas ao nível que comportam hoje em dia as plataformas de comunicação e o conhecimento cumulativo. Alguém já tem boa pista de como chegar à vacina; e outro também. Não querem é somar esforços e preferem tentar descobrir a parte que o outro  já conhece para, assim fazendo, levar sozinhos o butim. Custa imaginar que um troço que não resiste a água quente seja tão desafiante para a ciência. Mas a indústria farmacêutica é tenebrosa.

Além de ter concluído meu livro novo, a única grande alegria que podem me dar os próximos meses é ir ao Recife e ficar um dia, dois dias, três dias, uma semana toda de prosa com mamãe. Nenhuma outra pauta me tenta tanto, ninguém poderia ter a importância que ela tem para mim a essa altura da vida. Sabê-la bem me enche de ânimo, me revigora, me dá vontade de me cuidar para que nada possa frustrar essa perspectiva ainda tão cruelmente remota. É com ela em meus pensamentos que eu adormeço, é com a imagem dela que desperto, e é pensando na sua imensa alegria de viver que viro página após página, à espera desse ansiado reencontro. Falei há pouco de soldados russos e eis que estou me tornando um deles nesse particular. Sempre que passo na frente de Notre-Dame, penso nela. Foi no átrio da igreja que ela disse que passou o maior frio da vida. No calor de junho, imaginariamente, eu abraço-a e ouço sua voz divertida a meu ouvido, a contar histórias sem fim sobre seu delicioso cotidiano.

Aos 18 anos, praticamente não pensava mais em português. Passei todo o ano de 1976 e parte de 1977 pensando em alemão. Quando fui para Cambridge, construía as frases em inglês como fazia em alemão, e mal abria a boca as pessoas perguntavam de que parte do mundo germânico eu era: da matriz, da Suíça ou da Áustria? Agora estou assim com o francês, que tenho metabolizado nas veias há tantas décadas. É em francês que tenho sonhado e pensado, se bem que pensar não seja um verbo adequado a meus estados de alma. Tenho mesmo é agido sobre os pequenos focos dessa existência tão apequenada. Será que chegarei aos 200 dias aqui? Onde estarei lá pelo 21 de setembro? Celebrando a chegada do outono aqui ou na primavera paulistana? Talvez esteja morto, e não teremos nem uma coisa nem outra. Mesmo porque temos recidiva a caminho. Para os muito jovens, um mundo sem a censura nos olhos de minha geração seria um mundo melhor. Mas vamos evitar dar-lhes esse gostinho.

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@Foto de ilustração – Maurício Lima