Passeio solitário pelas ruas de Paris – autor desconhecido.

 

Dia bom para mim é quando trabalho muito. É quando preciso me torturar para ir além do que me permitem as forças. É quando me empenho à procura da palavra exata e desmonto um parágrafo inteiro para canibalizar as sentenças imprescindíveis, resignado a lançar à lixeira alguns dos trechos que me pareciam mais caros. Se isso não significa dormir vitorioso, equivale a travar uma partida de xadrez com um mestre que, sincero, reconheceu que você jogou bem. Dia medíocre é aquele em que faço de tudo um pouco e nada de importante. Os piores deles não são eles em si, mas a recordação torturante de que muitos foram passados nesse diapasão. Foram esses momentos de absoluto vazio existencial em que um amigo passava em casa e íamos tomar uma cerveja meio sem vontade de trocar confidências, mas apenas necessitados de companhia, ou achando que uma boa surpresa poderia surgir de onde menos esperássemos. Mas que nada. “Vamos nessa?” Então íamos embora e eu chegava em casa com a sensação de que algo de fundamental estava faltando à vida. Enfim, nenhuma tragédia a registrar, senão uma grande pasmaceira. Dia ruim, por outro lado, é aquele que passou sem que eu me apercebesse e em que nada fiz para despertar motivado na manhã seguinte. Talvez esse seja o ponto nevrálgico a que chego nessa madrugada de 4 de dezembro em que sinto um dente latejar de leve, e olho com parcimônia um envelope de Tramal onde despontam não mais que três comprimidos. Se tomar um agora, como esperar até a vacina? Ou será que acho mesmo que vou conseguir driblar o dentista até o dia da redenção? Saber que desperto sem um propósito amanhã, sabendo que depois do fim de semana só restarão mais três até 2021, eis do que alimentar um desespero. Mas digamos que a quinta-feira 3 que acabei de deixar para trás, tenha ficado na faixa intermediária. Quase boa, se o dente não pregar uma peça.

Sei que não sou máquina. Não posso me obrigar a ter rendimento máximo aos 62 anos, depois de 9 meses de pandemia, enclausurado na mesma cidade. Que diferença faz a essa altura que ela se chame Paris? A verdade é que desconfio que até o Natal eu não vá voltar a viver o turbilhão de abril a junho, quando trabalhava 12 horas ao dia e ia dormir com a cabeça cheia de ideias, temendo que a morte me emboscasse sem que eu tivesse tempo de registrar os diálogos de meus personagens imaginários. Querendo ou não, começa a latejar, além do dente, uma pulsão natalina dentro de mim. Era como se chegássemos de férias a Garanhuns nos anos 1960-70: a escola tinha ficado para trás e era normal que pensássemos mais em diversão do que nas obrigações. Nessas próximas 3 semanas, todo dia alguma coisa nova vai ser pretexto para um relaxamento disciplinar. À mesa, na atitude, nos julgamentos, nos rigores habituais. Só não talvez, e assim espero, nas cautelas contra a pandemia.

Depois de certa fase, a gente tem que se contentar com menos. Mesmo porque é depois dos 55 anos que os olhos se tornam capazes de ver a beleza. Antes disso, quando tudo era fácil sob vários aspectos, a gente não tinha equipamento espiritual para apreciá-la. O que é uma dorzinha aqui e outra acolá quando estamos fully equipped para detectá-la lá onde poucos a enxergam? O pai de uma namorada que sempre foi ótimo amigo, me ensinou duas verdades. Uma era da lavra dele. Aos 90 anos, me dizia: “quando te disserem que uma coisa é fácil, que se trata  de mudar os hábitos, desconfie dessa bobagem. Mudança de hábitos é uma coisa dificílima de fazer. Só um cacete.” Ele tinha razão o querido velhinho. A segunda eu também aprendi com ele, mas não dele, senão da boca de seus amigos. Todo ano íamos à sinagoga para as Grandes Festas judaicas. Ali ele encontrava pessoas que só via uma ou duas vezes esparsas. Quando perguntavam se ele estava bem de saúde e ele fazia o gesto de mais ou menos, mexendo a mão direita, todos os demais, também na mesma faixa de idade, diziam: “Nu, o que mais você queria afinal? Que o Messias tivesse chegado ao seu quarto só para você? A essa altura, estar mais ou menos já é ótimo.” Mesmo assim, vou eu. Definitivamente, se não trabalhar até o Natal, paciência, vou esperar a neve chegar e curtir paisagens. Mais importante do que qualquer outra missão que eu me outorgue, importante é manter esse dente sob controle, sair de máscara, passar álcool nas mãos e acompanhar o noticiário da vacina.

Foi com esse espírito que saí de perto de Notre Dame e caminhei em direção ao Luxemburgo pelo Boulevard Saint Michel. Uma das unidades do complexo de livrarias Gibert Jeune vai fechar. A rua tem só 40% do movimento normal, é espantoso. Na esquina da rue Racine, falei com o mendigo que não via desde agosto. “Voltou?” O francês dele não progride, ele ganha tão bem, devia comprar um método Assimil. “Esteve em casa?” Ele confirma. “Estava na Romênia. Situation très difficile.” Dei 2 euros pela velha amizade. Gosto de quem fixa suas regras de viver e permanece fiel a elas. E sobretudo, quem se mexe e viaja para viver de acordo com seu credo. Uma vez ele me disse que já trabalhou na Suíça, na Áustria e na Holanda. L ´Hollande n´est pas très bien pour les affaires. É claro que é ruim. A sovinice holandesa é fatal ao ramo dele. Na saída, disse-lhe que jamais tentasse a Escócia, mas acho que ele não entendeu a piada. Na esquina da rue de Vaugirard, lá estava a mulher dele. “Bonjour Madame, passou boas férias?” Ela fez o sinal com a mão, como fazia meu velho sogro. Pandémie grave en Roumanie, cher Monsieur. Disse que já tinha dado minha contribuição à família apontando para trás. Mexer em moeda significava ter que desinfetar os dedos com o pouco que restava de álcool. Ficar sem gel, nem pensar.

Só então contornei a rotatória e fui ver meu traiteur. Desde ontem eu estava com vontade de comer o repolho recheado que estava tão delicioso semana passada. Mas ontem tinha acabado. E hoje só tinha um…fiz minha cara de decepção clássica. Minha intenção era comprar três. Dois para hoje, um terceiro de reserva. Bonsoir. Il vous reste un seulement? Ele fez ares de malandro. Eh oui, un seul…hélas. Então piscou para o assistente: À moins que... Me animei. “A menos que…tenhamos guardado alguma coisa para os retardatários.” E peguei meus três. Nada como esse bônus de fidelidade que nos dão os bons comerciantes. Ele viu minha decepção na véspera e deduziu que eu voltaria à forra. Não são baratos os choux farcis. Cada um sai a 7 euros, mas vale cada centavo. O repolho vem estalando e o recheio de carne de porco com arroz é delicioso. Dá inclusive para comer frio, como fazem os gregos. Tomei um Bourgogne Aligoté gelado e dei uma olhada na televisão. Mal começou o noticiário, levei um susto. O que tinha a dizer o jovem Macron, que mais parece deputado de primeiro mandato, desses que não resistem a um microfone no grande expediente? Mas ora, dessa vez a intervenção se justificava. Ele fez uma justa homenagem ao ex-presidente Valéry Giscard D´Estaing que, para minha grande surpresa, pediu um enterro discreto, em família, sem homenagens de Estado. Grande europeu, modernizador, dinâmico e pensante, VGE foi um representante da França profunda, morto aos 94 anos de COVID. Quando já me preparava para dormir, comi um caqui doce e sumarento. Teria sido o fim do dia mais ou menos. Mas foi então que o dente começou a latejar. Teria sido o cáqui?