Pai com filho na floresta – autor desconhecido.

 

“Wald”, em alemão, é floresta. “Urwald” é floresta que sempre existiu no lugar em que está, está lá desde sempre, desde antes de seres humanos chegarem nela. Nas terras da região de Araraquara, onde meu avô Wilhelm Hoffmann chegou com a família em 1912, os Hoffmann preservaram um pedaço de floresta, que lá permaneceu mais ou menos intocado, ainda era assim quando andei por suas beiradas nos anos 1960, visitando a tia Luise nas férias.

Quando os alemães e outros europeus chegaram ali, no início do século XX, todo espaço ao redor era só floresta, e inicialmente os colonos foram contratados para derrubar a mata e abrir estrada até a aldeia. O distrito de Nova Europa só foi formalmente criado em 1913. Essas terras, antigas sesmarias, foram vendidas pelo governo brasileiro aos novos imigrantes europeus. Assim se constituíram unidades agrícolas que eram a subsistência desses colonos da primeira geração, como meus avós paternos. Os filhos ainda pequenos que chegaram com eles não ficaram lá quando adultos, foram p’ro Colégio Adventista em São Paulo e de lá foram estudar mais longe e ganhar a vida nas cidades grandes, alçaram voo, só voltavam ali alguma vez de férias, visitando a irmã, Luise, que lá ficou.

Já me disseram alguma vez na vida que eu era parecida com tia Luise. Imagino que só de rosto, pois Luise Hoffmann viveu o oposto do que foi minha vida cigana, ficou lá naquele pedaço de terra desde que chegou da Alemanha, ainda menina, até que já não aguentou o trabalho necessário para manter o sítio, para viver de agricultura de subsistência: plantar de tudo um pouco, milho, mandioca, abacaxi e verduras, até agrião na água corrente cristalina, que mangueiras, laranjeiras e pés de mexerica haviam plantado décadas atrás, na chegada; ordenhar as vacas, bater manteiga e fazer queijo, arrear o cavalo da charrete uma vez por semana para ir vender os laticínios e ovos na cidadinha, e lá comprar um pouco de sal, açúcar e óleo, e o querosene do lampião; catar graveto e partir madeira para o fogão e o forno a lenha, saber até usar um machado, fazer pão integral, lutar contra formigas, revoadas de periquitos destruindo o milharal, bicho-do-pé, e até uma cobra de quando em vez. De quando em vez, tirar mel das colmeias. Cortar o cacho da bananeira. E arrancar erva daninha do pasto. Cuidar de gatos e cachorros, necessários.

Vivemos nesse sítio de Nova Europa no tempo da II Guerra Mundial, quando os alemães tiveram ordem de deixar zonas costeiras, em particular Santos, onde meu pai foi demitido do City Bank por ser alemão. Crianças pequenas, com pai e mãe por perto o dia todo, eu e meus dois irmãos mais velhos fomos felizes no mato, brincando no córrego, fazendo castelos de barro, correndo na chuva pelados, indo com o pai pescar lambari no rio Itaquerê, jogar milho p’ras galinhas no fim do dia. A tia Luise alguma vez até me levou na charrete até a cidadezinha, voltamos pela estrada de terra quando o sol se punha, cochilando, que a égua Jurema sabia o caminho de casa. Em resumo, vimos por três anos o que é “agricultura familiar” organizada com conhecimento e labuta diária de um camponês europeu. E eu lembro que o papai nos levava a passear na floresta, levando a foice para cortar os cipós, mandava tomar cuidado para ninguém pisar em cobra, mesmo tendo em casa soro antiofídico trazido do Instituto Butantan.

Meu pai chamava de nosso “Urwald” aquele pedaço de mata, mais ou menos intocado desde que ele chegara ali criança, uns 30 anos antes. Com um pouquinho de ironia, pois primeva a mata já não era há tempos. Mas nos mostrava algumas árvores que talvez estivessem ali desde sempre. Esse pedacinho de floresta em que fui passear na minha infância ainda está lá (graças ao Código Florestal), cada vez menos “Ur”, mas sumiu a casa, o estábulo, o paiol das espigas de milho. Os sítios dos antigos colonos em sua volta viraram um imenso canavial.

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O que tem a ver com “Ur-Fascismo” essa longa introdução de memórias aleatórias? Vivemos no sítio da tia Luise nos últimos anos da II Guerra Mundial, que foram os últimos anos da ditadura de Mussolini na Itália, fuzilado em praça pública em abril de 1945. Mas lá no mato nunca soubemos do que aconteceu longe dali, pois meus pais e avós nunca falaram de guerra com as crianças. Só vim a saber da guerra quando ela já tinha passado, nazismo e fascismo derrotados.

Admito que a conexão com meu relato de infância no mato é um tanto arbitrária, para explicar por que ainda tínhamos em Nova Europa um pedacinho de “Urwald”, para contar que assim sei desde pequena o significado de “Ur”, e tenho a pretensão de que entendo Umberto Eco quando usa o termo “Ur-Fascismo”, que ele chama de “fascismo eterno”. Mas a conexão existe também porque a bela aula de Umberto Eco, que reli numa das tardes deste inverno (“O fascismo eterno”, in Umberto Eco, Cinco Escritos Morais, Editora Record, Rio de janeiro 2010), ensina que há germes de fascismo desde que o homem existe.

Só agora, relendo, me dei conta de quanto o bolsonarismo, em particular como expresso pelo seu líder, apresenta boa parte dos 14 arquétipos de “Ur-Fascismo”, os sintomas profundos e primevos analisados por Umberto Eco, aqueles sinais originários que, se não forem detectados, compreendidos, contidos e mantidos dentro dos limites da República, podem trazer de volta o fascismo em qualquer tempo e qualquer lugar.

Não temos um governo fascista no Brasil, ainda não. Há, sim, ameaças Ur-Fascistas ao precário regime democrático que existe no Brasil. Injustiça e desigualdade já indicam a fragilidade da nossa República e o quanto a democracia é aqui imperfeita. Mas a ameaça à democracia fica bem clara quando verificamos quantos dos arquétipos do “Ur-Fascismo” vêm à tona no bolsonarismo.

Umberto Eco viveu o fascismo italiano, e começa por contar suas vivências e o que aprendeu quando a guerra acabou. Estudou regimes ditatoriais em outros países, literatura e arte dos fascistas, e distingue o fascismo claramente do nazismo e do stalinismo, que têm como base uma doutrina e um programa. Por comparação, o fascismo é algo mais difuso, encontram-se nele mais contradições quanto ao que é admitido ou rejeitado, há sincretismo nos sinais, combinações diversas de tais sinais em diferentes países e diferentes momentos históricos. O bolsonarismo tem muita mistura, muito linguagem chula, muita fala transformada em seguida no oposto, mas no movimento emerge nitidamente boa parte dos arquétipos analisados por Umberto Eco.

– Os dois primeiros da sua lista de catorze sintomas primevos são “culto à tradição” e “a recusa à modernidade”, manifestações interdependentes. Considera-se que todas as mensagens antigas têm alguma sabedoria, mesmo que sejam incompatíveis. Em consequência, observa Eco, “não pode existir avanço do saber”. Assim, “o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo”. No bolsonarismo isso ficou manifesto na defesa de remédios tradicionais usados para doenças antigas, mas provados inúteis para o novo coronavirus, e no desprezo pelos resultados das pesquisas científicas e o uso da experiência pessoal individual como critério da verdade, seja da física e da astronomia (como no terraplanismo), seja da biologia e infectologia (na obtusa desinformação sobre as formas gerais de transmissão e de ação do novo vírus). Sabemos das consequências graves que esse tradicionalismo anticiência teve no enfrentamento da pandemia desde o início de 2020. Os mesmos arquétipos vêm à tona na incompreensão sobre mudanças sociais ao longo dos séculos, na origem da intolerância do bolsonarismo com comportamentos fora da conformidade.

– Na lista de Umberto Eco na caracterização do Ur-Fascismo segue-se o “culto da ação pela ação”, decorrente do “irracionalismo”. Valoriza-se a ação, independente da reflexão sobre eventual racionalidade da ação pretendida. Aqui, como alhures, isso se manifesta na “caça aos comunistas”, na paranoia de ver “comunistas” em cada esquina e atribuir a esses supostos “inimigos” força inusitada (a exemplo da que bolsonaristas atribuem ao Foro de São Paulo, do qual antes nem se falava), no ataque às “universidades, esses ninhos de comunistas”. Sem falar do anti-intelectualismo e do desrespeito ao conhecimento especializado que vem com muitos anos de experimentos e estudo. Um desrespeito que reaparece nas nomeações para cargo público sem a devida qualificação do indicado.

– O quarto arquétipo é ligado aos anteriores: “para o Ur-Fascismo o desacordo é traição”. Há coisa mais característica do bolsonarismo do que o desespero com traições, as agressões aos que discordam e se afastam? Na comunidade científica moderna (e não é só em ciências exatas) o desacordo funciona como instrumento de avanço do conhecimento. Então chama a atenção a maneira pela qual bolsonaristas reagem ao desacordo: em nenhuma época convivemos no Brasil com tanto xingamento quanto na era Bolsonaro. Ligado à ojeriza ao desacordo está o natural medo da diferença. “O Ur-Fascismo é racista por definição” diz o 5º arquétipo de Umberto Eco. Bolsonaro já declarou que seus filhos são “bem educados, não casariam com uma negra”.

– Tradicionalmente uma das características do fascismo histórico é o apelo a camadas sociais frustradas, por crise econômica, humilhação política, medo de cair na “escala social”: “O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social.” E para quem não tem outra identidade social, o único privilégio é ter nascido em um mesmo país. Eis a raiz dos “nacionalismos”, que são parte da psicologia Ur-Fascista, além da mania de conspiração – “a obsessão do complô, possivelmente internacional”. A apropriação da bandeira nacional como símbolo partidário, a pretensão do monopólio de amor à pátria, os ataques infundados a governantes de outros países, a hostilidade geral a organismos internacionais, a fantasia de que o mundo quer tomar do Brasil a Amazônia, o despreparo para a negociação internacional e a diplomacia, a ideia de uma conspiração da “esquerda mundial” contra Bolsonaro – é comprida a lista dos sintomas a provar que existem no bolsonarismo as características 6 e 7 do Ur-Fascismo segundo Eco.

– Os adeptos de um movimento fascista devem sentir-se humilhados pelo inimigo, escreveu Eco, mas referiu-se basicamente a como os italianos, pobres, sempre ouviram da superioridade dos ingleses “povo das cinco refeições”. Isso explicaria algo da ascensão do fascismo italiano.

O bolsonarismo manipula o inverso: suspeito que há no Brasil difusa sensação de superioridade em relação aos vizinhos latino-americanos. Mas o sentimento de inferioridade no bolsonarismo ficou patente quando, no Forum Econômico Mundial em janeiro de 2020, Bolsonaro foi incapaz de conversas com as lideranças do mundo, se isolou, foi comer sozinho no bandejão de Davos. Nitidamente não se sentiu “um igual”, não superou o cadete 351 com suas notas médias e apelido Cavalão.

– Outras características analisadas por Eco têm registro no bolsonarismo, como a visão de que “o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente”. A predisposição à violência está clara até na incapacidade de Bolsonaro dialogar com seus colaboradores e refletir sobre os problemas nacionais, na incapacidade de entender o que é uma negociação que não seja de compra e venda, no fato de que se iniciou em política, no quartel, com um plano de detonar explosivos em pontos estratégicos a título de divulgação de uma campanha salarial. Registre-se ainda o automatismo do seu gestual das “arminhas”, disparando com ambas as mãos. E os decretos liberando porte de armas baseado apenas em seus impulsos, sem critérios obtidos em avaliação dos efeitos de tal medida e ignorando as leis vigentes. Até a maneira com que Bolsonaro lidou com a pandemia foi afetada por sua mentalidade de guerra permanentesem reflexão nem racionalidade. Está presente inclusive no seu linguajar de mandonismo, no ridículo de ter ameaçado os EUA com “pólvora”.

– Um elitismo que implica desprezo pelos fracos, junto com um modelo de organização hierárquica em que cada nível de liderança despreza os níveis subalternos e estes os subordinados, é o arquétipo 10 de Umberto Eco. Haverá algo tão essencial na retórica de Bolsonaro quanto seu conto de que é o “atleta” que a Covid não derruba, que a Covid só atinge os fracos, sua alucinação de que um vírus se vence de peito aberto com coragem e valentia (de preferência de motocicleta), suas declarações de que o coronavirus escolhe covardes sem coragem de arrancar suas máscaras e gritar contra a crítica? É parte da sua notória incapacidade de ter empatia. E quem não viu ainda bolsonaristas gritando “mito” para seu herói? Culto ao herói e culto à morte também estão na descrição do Ur-Fascismo, interligados com o desprezo pelos fracos e o sentimento de inferioridade.

– O machismo e a homofobia de Bolsonaro estão documentados em inúmeros vídeos. Não vou aqui reproduzir as falas chocantes com insinuações pornográficas disponíveis na internet para quem quiser ouvi-las. Apenas reproduzo arquétipo 12 do Ur-Fascismo: “Como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo. … Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma invidia penis permanente.” Deixo aos psicanalistas análise mais precisa. Só observaria que, pelas obsessões de linguagem de Bolsonaro e intervenções recentes de bolsonaristas na CPI da Pandemia, se non è vero è bene trovato.

Os dois últimos arquétipos do Ur-Fascismo que aparecem na aula de Umberto Eco são populismo qualitativo(que apresenta como “voz do povo” a resposta emocional de um grupo selecionado da população) e uma neolingua (uma linguagem, vocabulário e sintaxe peculiares, que limita os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico). Não é difícil demonstrar que estão também na base do bolsonarismo, quando aceita Bolsonaro como “enviado de Deus” junto com a concessão de regalias especiais para grupos religiosos escolhidos ou os comunicados informais dos tuites de frases e vocabulário estapafúrdios.

Adiantou chamar Bolsonaro de fascista na campanha eleitoral de 2018? A população em que estão impregnadas e subjacentes muitos desses brotos de Ur-Fascismo não conseguiu captar o sentido da crítica. Oxalá pensar sobre as características do Ur-fascismo, o fascismo eterno subjacente, nos ajude a entender melhor porque o epíteto sozinho não adiantou nem vai adiantar para enfrentar a ameaça à democracia que é o bolsonarismo.

 

O Urwald é aquela mancha grande mais escura na parte superior (a mata que só existe hoje ainda, apesar de deteriorada, porque o Brasil aprovou o Código Florestal há algumas décadas). Meu irmão Rodolfo, o economista e agrônomo (que foi que achou isso via Google satélite), diz que o que aparece mais clarinho meio rosado deve ser o canavial na etapa da palha seca no chão. Aquele pedaço vertical de manchas azul-escuro é o córrego onde brincávamos, e que criou mata ciliar que não estava lá (também graças ao Código Florestal).