Chatos - H Bosch

Chatos – H Bosch

 

Os chatos estão em toda parte; infiltram-se, espreitam. Ninguém menos evitável do que um chato. Quando se aproximam, temos a sensação de que a chatice tem o condão de nos tirar do caminho do bem e do amor à humanidade. Todos os dias, inventa-se alguma coisa, mas até agora não se inventou um método seguro de nos livrar dos chatos. Talvez Madame Verdurin, em seu salão proustiano, com suas antenas neuróticas, tivesse um método, mas não nos deixou nenhuma receita. Ela sempre quis fugir dos “maçantes” como o diabo da cruz. Farejava os chatos a distância, evitava-os no seu salão burguês. O triste do chato é que ele, quase sempre, não tem a vaga ideia de que é chato, nisso lembrando as pessoas que têm olho de seca-pimenta e que mal imaginam o poder de destruição que carregam em suas retinas. 

Sempre sagaz, Millôr Fernandes pontuou: “Chato quando vai embora vira assunto”. Na mosca. Mal um chato dá as costas, um alívio coletivo perpassa o grupo: respira-se e volta-se a uma sintonia perdida na conversa.  Millôr também observou com ironia: “Quando um chato diz: ‘Eu vou embora’, que presença de espírito!”. Ao que parece, o chato tem o dom de mexer com as entranhas de nosso ser, assim sentimos que o “espaçoso chato” não cabe em nenhum apertado recanto de nossa alma.

Num texto veemente e bem-humorado, Dalton Trevisan nos leva a perceber todo o mal e todo o terror que um chato pode nos causar. Está no seu livro “Mistérios de Curitiba”, e vale a pena citar mais de um trecho.

“Livra-me dos chatos e Te agradecerei, ó Senhor. Rouba-me o dinheiro, enterra-me em cada dedo a Tua unha encravada, mata-me de morte lenta e dolorosa, mas livra-me dos chatos. Há chatos demais, Senhor, nessa Tua cidade. De piolhos cobre-me a cabeça, esconde o meu óculo, Senhor, mas livra-me dos chatos. […] Estragam ainda na xícara o gosto do café. Azedam o leite no seio da mulher grávida; […] Endureceste o coração contra mim: sou eu Faraó e são os chatos teu povo?”.

Eis, nessas magistrais imagens bíblico-jocosas do “Vampiro de Curitiba”, toda a potência dos chatos, cujo nome, para nos mantermos igualmente bíblicos, também é Legião, assim como o Evangelho denomina o próprio demônio.

O chato é insidioso. Mas defini-lo talvez seja melhor em negativo, como sugerem certos filósofos ao abordar o capítulo escorregadio das definições. Neste passo, a tentação é parodiar pela enésima vez a frase de Santo Agostinho sobre o tempo: “Se me perguntam o que é um chato, já não sei; se não me perguntam, sei o que é”. Então, como ninguém nunca me perguntou, estou realmente ciente do que é um chato, um insuportável chato (o que é redundante, pois todo chato é insuportável). Por essa, eu mesmo não esperava: o chato que não defino se desenha em mim completamente claro, metido, eloquente… Sim, não há chatos lacônicos. O bom chato, o ótimo chato, se podemos tolerar tal paradoxo, é um verboso nato; é literalmente blá-blá-blá, ruído, barulho… Às vezes, só a voz de um chato é capaz de desencadear nossa ojeriza (a palavra é feia, mas condizente!). Chato é ojeriza.

E como é difícil se libertar do chato! Será que é impossível se chatear um chato? No seu “Tratado geral dos chatos”, o teatrólogo Guilherme de Figueiredo acredita que sim. Prefiro acreditar que não, tenho fé. A fé talvez remova os chatos para as montanhas! Mas algemas invisíveis nos unem aos chatos. Algemas pesadas. E, ao tentarmos abandonar a férrea presença do chato, procurando uma necessária fuga, logo sentimos que o chato está grudado em nós, logo notamos sua mão pesada tocar nosso ombro e nosso braço. É lá como quem diz: “Aonde você pensa que vai?” Sim, a desgraça se abate implacável sobre nossa alma: a essa altura, minutos eternos já se instalaram em nosso relógio… Nauseados, percebemos, como Millôr, que tal “[…] indivíduo tem mais interesse em nós do que nós temos nele”. Enfim, é tudo muito chato.

Não nos alonguemos. Ponto-final. Alongar-se é próprio  dos chatos.