O premiado jornalista recifense Fabio Victor, radicado em São Paulo, nos brindou, em fins desse finado 2022, com um livro notável e que entrega o que promete. Refiro-me a “Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro”, que, ao longo de suas quatrocentas páginas, mantém a mira aprumada. Nada de artilharia pesada, mas também nada de tiros de espoleta! Fábio escreveu um livro fluente, fundamentado em cinco anos de pesquisas e fortemente municiado de muitas fontes primárias. Nada de complexas interpretações, pois não temos nas mãos um livro de cientista político (nada contra, evidentemente, os cientistas políticos), mas de um autor habituado a falar para o grande público de uma forma crítica, clara e elegante. De resto, como frisa Fabio, seu livro não é um “instant book” ou “opportunity book”, um livro de ocasião, momentoso, porquanto “seu objeto de estudo é anterior à ascensão de Bolsonaro ao poder”.

O recorte temporal de “Poder camuflado”, de 1985 aos dias de 2022, vem a propósito e mostra como a tutela militar em nossa democracia continua de prontidão e “de serviço”, como bem percebeu o cientista político Jorge Zaverucha, citado pelo autor: “[…] a inexistência de golpes militares no país desde 1985 não significa que tenha sido criado um controle civil nas Forças Armadas. Quando têm seus interesses ameaçados, eles costumam mostrar o tacape, e o poder civil cede”. Naturalmente, por notórios fatores históricos, é sobretudo a tonalidade verde-oliva do Exército que está presente, camuflada ou não, no cenário político e no coração do poder.

Evidentemente, 1964 é um ponto de inflexão, pois os anos de regime autoritário moldaram a realidade mais recente como que fixando, no imaginário das Forças Armadas e da própria Nação, que os militares são, de fato e de direito, os fiadores últimos não só da defesa, mas dos governos da República.

Enumeremos, segundo o autor, mas sem entrar no mérito, os principais pontos de atrito das Forças Armadas com os governos pós-redemocratização. Em primeiro lugar, a Lei de Anistia de 1979, que, volta e meia, vem ao palco das polêmicas, mas que já foi, de fato, pacificada por decisão do Supremo em abril de 2010. Outro ponto é a repulsa dos militares às pretensões do PT de mexer nos currículos das escolas de oficiais, conforme o estabelecido no VI Congresso Nacional do Partido em 2017. E ainda temas como: o trabalho da “Comissão Nacional da Verdade”, que os militares praticamente não digeriram; além do sentimento de que a moralidade pública, durante o Governo Dilma, estava em perigo em face das denúncias de corrupção e das ações empreendidas pela Operação Lava Jato; sem falar no polêmico artigo 142 da Constituição Federal, sobre o qual o Supremo e a Câmara já se manifestaram em desfavor de qualquer pretensão golpista; e, por último, mas não menos importante, nos estremecimentos administrativos entre o Executivo e os militares nos mandatos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso. 

Não obstante os oficiais “protestos de elevada estima” de parte a parte, o que testemunha o livro de Fabio é que militares e civis vivem em recíproca desconfiança. De sua parte, os governos da República contemporizam, perdoam, esquecem, conciliam…, o que, em negativo, só mostra a enorme e latente dimensão do conflito, com os fardados sempre levando a melhor. 

“Poder camuflado” nos presta um grande serviço ao trazer depoimentos de oficiais de alta patente que, por assim dizer, mostram como funciona a cabeça dos militares.  Como ocorre entre nós, civis, há no meio militar os democratas, os moderados, os golpistas e radicais (estes últimos geralmente frequentam a mídia e as manchetes e, mais recentemente, candidataram-se a cargos políticos). Também deixa claro que os militares, de uma forma geral, são mais antipetistas do que antilulistas! No mais, o que fica patente é que eles se colocam como uma aristocracia e que para isso têm os seus motivos. Muito oportunamente, o autor cita as palavras do historiador e cientista político Francisco Carlos Teixeira, o que explica, mas não justifica, ingerências no poder civil e uma nem tão disfarçada segregação, “in verbis”:

“Os militares sempre se acharam uma aristocracia, talvez porque tecnicamente estão disponíveis para morrer, fazem juramento de morte ao abraçar a carreira. A sociedade não entende ou não percebe isso […] Esses espaços de isolamento, como a Vila Militar [na cidade do Rio de Janeiro], são também uma resposta à falta de diálogo entre militares e sociedade”.

Finalmente, como se pode imaginar, o livro termina com a ascensão de Bolsonaro à presidência e seus posteriores movimentos golpistas e autoritários. Foi um candidato a quem os militares aderiram em massa, menos pela figura em si do ex-presidente do que pelo receio de uma volta do PT ao poder e pelas circunstâncias sociais de “temperatura e pressão”. Nesse passo, o autor cita o ex-chanceler e ex-ministro petista da Defesa Celso Amorim, para quem “’Bolsonaro é um produto das elites brasileiras, e não dos militares”. Pode ser, mas o apoio das Forças Armadas foi decisivo para a consolidação do candidato extremista, como testemunham os movimentos dos generais Eduardo Villas Bôas, Hamilton Mourão e Augusto Heleno e de várias instituições militares. Como quer que seja, todos nós testemunhamos uma  crescente promiscuidade entre a política e a caserna, de resto nociva a ambas as partes. Bolsonaro, sonhando com uma distopia ultrarreacionária, e várias vezes infringindo a disciplina militar, mandou às favas o verniz da camuflagem e fez de seu governo um visível condomínio com os militares. O rastro, sabemos, foi destruição, retrocesso e terror.