Eu e o Outro - autor desconhecido

Eu e o Outro – autor desconhecido

 

Há exatamente um ano, a internet e a TV nos mostraram a queda de um cenário na casa de um dos participantes de uma reunião de trabalho virtual. Uma biblioteca desabou por trás de um desembargador amazonense. O vexame teria sido menor e talvez não tivesse virado notícia se não fosse justamente um curioso detalhe: a biblioteca era falsa, puro fundo cenográfico, criada sob medida para ser uma espécie de… paisagem intelectual. Na prática, era um simples biombo que separava o público do privado. Nada de volumes, por assim dizer, de carne e osso. 

Pergunto-me que livros assim de mentirinha estariam ali naquelas falsas prateleiras. É de se imaginar que, sendo o seu ilustre possuidor um homem do Direito, um magistrado, devesse ter, em suas pseudocoleções, os mais augustos tomos de sua área: respeitáveis códigos, revistas jurídicas encadernadas, juristas clássicos, compêndios de acórdãos, quem sabe até alguma coisa que pudesse ler com satisfação. Mas não duvido que, entre tantos livros de escol, fôssemos também encontrar um Tolstói, um Shakespeare, um incontornável Machado de Assis, um adormecido Proust, enfim uma literaturazinha que tanto brilho traz a qualquer biblioteca, seja ela caída ou orgulhosamente de pé. Infelizmente, nada vimos daquelas lombadas que até então ocultavam sua obediência à lei da gravidade.

Dir-se-ia que a desabada biblioteca estava um tanto revoltada contra o dono, embora não tenha caído por cima dele, mas em sentido oposto, para trás, talvez numa inútil tentativa de fuga… Mas eis que o egrégio magistrado se levanta e, com celeridade, soergue o fictício patrimônio. Ei-la de volta, após um breve gesto, altiva e silenciosa, como costumam ser as bibliotecas.  

Eis um tema para um filósofo sereno e desocupado: a insustentável leveza dos falsos livros. Imaginem que desastre teria sido se os livros e a estante fossem de verdade. Quem sabe se o enigmático destino não evitou uma tragédia ao Judiciário nacional, poder atualmente já de si tão abalado por tantas tragédias e outros gêneros assustadores.

Vem à memória o caso, este, sim, realmente lamentável e nada jocoso, do embaixador Sebastião do Rego Barros, que, em 2016, caiu para a morte do alto de seu apartamento em Copacabana, no décimo primeiro andar, justamente porque fora pegar um livro numa prateleira mais alta e se desequilibrara. O experiente diplomata, que tinha 75 anos, mantinha parte de sua biblioteca na varanda. Morreu, disseram os jornais, abraçado a um dos volumes da biografia de Vargas, do jornalista Lira Neto. O caso parece nos deixar uma lição exemplar: nada de biblioteca junto a janelas ou alongadas para varandas, desde que não se esteja num prosaico térreo, de preferência bem gramado ou atapetado…

Nosso desocupado filósofo, imaginado no antepenúltimo parágrafo, poderia, comparando ambos os casos evocados, já se sair com uma pomposa dedução, algo como: “Se os falsos livros levam apenas a um vexame passageiro, os verdadeiros livros, por sua vez, ainda que, em circunstâncias aleatórias e fortuitas, podem levar ao próprio fim da existência”. Ou talvez concluir de forma um tanto moralista: “A leveza dos falsos livros nos faz pensar no peso dos verdadeiros”. Fico com esta última ponderação, menos dramática e mais econômica nos adjetivos!