Pinóquio

Pinóquio

 

Vencedor de vários prêmios de animação, o musical (eu diria: o semimusical) “Pinóquio”, de Guillermo del Toro e Mark Gustafson, terminou agraciado com o Oscar de 2023. Como fartamente noticiado, o filme foi um acalentado sonho de Del Toro. Para ele, Pinóquio é uma espécie de fênix que, claro, sabe renascer para cumprir o seu destino libertário com plenitude. No fundo, parece se tratar de uma metáfora para a Arte, que ressuscita das cinzas e dos desastres; no caso, como se sabe, das cinzas da guerra e do pó da destruição.

Del Toro aproveita bem a energia contestadora e o espírito irreverente do célebre personagem de Carlo Collodi. Nesse sentido, a ambiência da história numa Itália fascista sob a liderança de Mussolini é um belo achado e rima, por assim dizer, com a sede de lucro de quem quer tirar partido mercantil da extravagante e fantástica criatura de madeira, como de resto de todas as criaturas… 

Ao lema fascista “Crer, obedecer, combater”, então disseminado pela península e por toda parte visível no filme,  Pinóquio propõe o duvidar e o contestar, que, por si mesmos, são uma forma de combater o eterno espírito militarizado do fascismo. Enquanto o empresário do entretenimento, personificado no dono do circo, aposta num lucro desmedido e injusto, o boneco reage com a recusa que já estava implícita no lirismo original da sua história e que, a rigor, é uma defesa da poesia, do ócio criador e de uma nova ordem do real.

Numa sequência joco-séria do filme, mostra-se um espetáculo circense de marionetes feito sob medida para adular o “duce”, então popular. Pinóquio, para desespero do empresário do circo, apronta uma das suas, com verve e bom humor. É divertido e irônico vermos Mussolini, logo à entrada do evento, exclamar entusiasmado para si mesmo: “Eu gosto de bonecos!”, uma frase ambígua e carregada de um incontornável sentido político. O “duce” mal adivinha o que o espera da parte do impertinente Pinóquio. Ao perceber, já na plateia, a  sua insustentável e vexatória situação, Mussolini não hesita em ordenar “comme il fault”: “Atirem nele e queimem tudo!”. 

Marionete viva, livre de cordéis manipuladores, o boneco deixa claro que pensa diferente, falando mais verdades que mentiras, ao  contrário do que popularmente se imagina (aliás, tal como acontece na história original do escritor italiano). Por sua vez, os fascistas querem, por conta de sua “imortalidade”, transformá-lo numa espécie de soldado perfeito, num herói que nunca  morre, dedicado ao culto fascista do heroísmo e da guerra. Mas a “imortalidade” de Pinóquio, propiciada pela Fada e também espertamente negociada pelo boneco com a própria Morte,  está a serviço da vida, e não da morte; a serviço da paz, e não da guerra. Suas poucas mentiras defendem o ser humano da ordem fascista que se quer dominante. No mais, será com seu nariz crescido que Pinóquio salvará, de dentro do monstro marinho, Gepeto, o Grilo Falante e a si mesmo, como a nos lembrar a advertência de Proust de que a mentira é “[…] o instrumento de conservação  mais necessário e mais empregado”.

Após várias mortes e ressurreições, o boneco de madeira, que num tempo de guerra se revela simbolicamente à prova de fogo, precisa aceitar a morte como um sinal de que é humano, vivo, real, existente. Afinal de contas, a morte, tal como a entendemos, só existe para nós, humanos, porque, ao que parece, só nós temos consciência dela. Finalmente, o Pinóquio de Del Toro não se transforma num menino de carne e osso, mas continua, agora já órfão de Gepeto, um boneco a animar os humanos: não mais um duplo, como foi vicariamente em sua origem. 

Será preciso dizer que a animação em stop-motion de Del Toro, com proveitosa união de sensibilidade e recursos tecnológicos, não é um filme para crianças? Todavia, as teclas da melancolia e da política, embora tocadas com intensidade, não escondem a força vital e infantil de que está impregnado o boneco imortal de Carlo Collodi. Enfim, não precisamos tirar as crianças da sala.