O mundo e o Brasil mudaram bastante, nas últimas décadas, mas o presidente Lula da Silva e o seu partido não perceberam, ou preferem não ver. Mudar de estratégia, rever caminhos e políticas, repensar prioridades incomodam muito, e a maioria da esquerda brasileira continua presa ao passado. Não aprende com os erros, nem sequer os reconhece, e se prende a alguns sucessos em condições particulares, que não correspondem mais à realidade atual. Continuam estatistas, protecionistas e pródigos nos gastos, mesmo quando as circunstâncias pedem novas ideias e políticas diferentes. 

O sucesso do passado é traiçoeiro. O presidente Lula da Silva e o seu partido (PT-Partido dos Trabalhadores) estão dominados pela memória de um sucesso curto e efêmero do primeiro e parte do seu segundo governo que, no entanto, ocorreu em condições muito especiais e totalmente diferentes daquelas com que contam neste terceiro mandato. O que funcionou relativamente bem até 2008 pode levar a um desmantelo da economia brasileira, se o governo não compreender as atuais circunstâncias internacionais e as restrições fiscais do Brasil do momento. Essa cegueira cognitiva, misturada com a arrogância política, já nos legou uma grande crise no governo de Dilma Rousseff. 

No início do século, a economia mundial vivia um excepcional boom das commodities, com o crescimento econômico da China alimentando a expansão do Brasil, combinado com um ciclo de dinamismo da globalização, o que Alan Greenspan chamou de “exuberância irracional”, e que iria levar à crise do sistema bancário em 2008. A aposta de Lula no consumo e na distribuição de renda como vetores do dinamismo da economia foi possível nos primeiros anos do século porque a economia brasileira estava alavancada pelo dinamismo mundial. Cresceu a ritmos superiores à média histórica recente, no rastro das condições muito favoráveis da expansão “irracional” da globalização, liderada pela China. 

Todo o contrário do que vemos hoje no contexto internacional. Desde a crise de 2008, rebatida pela pandemia da Covid 19 e pela invasão da Ucrânia pela Rússia, a economia mundial retraiu-se e convive com crise de suprimento e inflação. A China ainda é o grande comprador de commodities e o principal parceiro comercial do Brasil, mas num patamar muito inferior aos anos gloriosos. Contaminado pela memória de um passado de sucesso circunstancial, Lula não percebe ou não quer perceber as novas condições econômicas globais, e continua apostando no consumo e nos gastos públicos para promover o crescimento da economia sem inflação.

A base do crescimento de uma economia é o investimento, principalmente o investimento privado, que amplia a capacidade produtiva do país. Por diferentes razões, entre as quais a estagnação da produtividade da economia, há décadas, a taxa de investimentos flutua em patamares baixos (em torno de 17% do PIB). Mesmo no primeiro mandato de Lula, a taxa de investimento do Brasil esteve sempre abaixo de 20% do PIB, quando, na maioria dos países emergentes, flutuava em torno de 25% do PIB. A arenga de Lula contra os juros altos é sincera e correta (embora nada justifique o estilo grosseiro e simplista dos seus ataques ao presidente do Banco Central), mas reflete a sua expectativa de financiamento do consumo e do capital de giro, o que pode impulsionar a economia com aproveitamento da capacidade ociosa, mas também pressionar os preços. 

A condenação raivosa do presidente às altas taxas de juros é estranha, contudo, quando se considera que, no seu primeiro governo (2003/2006), com a política monetária comandada pela dupla Pallocci/Meirelles, tivemos juros superiores aos atuais. Apenas em 2003, a taxa real de juros (taxa nominal menos inflação) foi inferior aos 8,15% da atual gestão (março de 2023) de Roberto Campos Neto, inimigo número um de Lula; alcançou 9,63%, em 2004, subiu para 12,8%, em 2005, e 10,53%, em 2006.

O presidente também não consegue perceber que as condições fiscais do Brasil se deterioram desde 2003, por conta de um processo continuado e inercial de crescimento das despesas primárias. Apesar de ajustes no sistema de Previdência e de uma reforma mais ampla no governo de Michel Temer, contra a qual o PT mobilizou todas as energias e muita desinformação, as despesas com Previdência Social e Pessoal representam quase 70% das despesas primárias. No total, cerca de 90% das despesas primárias são obrigatórias e com inércia de crescimento, deixando muito pouco espaço para aumento dos gastos públicos. Mesmo assim, Lula e, mais do que ele, grande parte do PT, continuam pensando que o governo deve abrir as torneiras para fomentar a economia, com transferência de renda para a população e para gastos correntes nos serviços. A PEC da transição e outras decisões recentes, como o aumento do salário-mínimo, vão pesar nas despesas primárias obrigatórias, diminuindo os espaços para outros gastos. Decisões importantes, e até necessárias, não cabem na situação fiscal, levando a possível aumento do déficit público e do endividamento (R$ 179,5 bilhões neste ano). Dois aspectos que, corretamente, estão sendo delimitados pela proposta de arcabouço fiscal apresentada ao Congresso. 

O ministro Fernando Haddad está consciente das limitações fiscais  e de que não é possível retomar o crescimento da economia se não se sinalizar para um consistente movimento futuro de equilíbrio das contas públicas. A proposta de arcabouço fiscal atualiza, flexibiliza e adapta o Teto de Gastos aprovado no governo Michel Temer, condicionando o aumento das despesas a uma proporcional elevação da receita pública, até um limite de 70% do adicional arrecadado em cada ano. Para regular esta possível elevação dos gastos, o arcabouço define duas metas: zerar o déficit primário já em 2024 e manter o endividamento abaixo de 77% do PIB em 2026, no pior cenário. A proposta é muito boa, excessivamente otimista e peca nos detalhes, precisamente numa lista de exceções, algumas das quais, como o piso salarial das enfermeiras, que trata de um nó político circunstancial, deixam brechas para futuras licenças adicionais de gasto. 

O mais complicado, contudo, reside numa corrida desenfreada por aumento de receita que, além de politicamente difícil, pode levar a uma perigosa elevação da carga tributária do Brasil, que já é uma das mais altas dos países emergentes; a carga tributária brasileira chega a cerca de 33,4% do PIB, apenas um pouco abaixo da Alemanha e bem acima dos 25,2% da Coreia do Sul, e dos 20,7% do Chile. Todas as medidas anunciadas pelo ministro Haddad até agora têm sido no sentido de elevação da receita, de modo a atender às pressões do presidente Lula para aumento dos gastos públicos, sem nenhuma providência efetiva na direção de uma reestruturação das despesas primárias. O ministro tem insistido no aumento da receita a partir de uma redução da renúncia fiscal em vários setores da economia, estimada em mais de R$ 600 bilhões por ano. Embora seja correto fazer uma revisão desses incentivos, alguns são intocáveis, como os da Zona Franca de Manaus, e outros contam com poderosos interesses políticos que vão criar dificuldades.

Em todo caso, se se conseguir aprovar sem grandes mudanças, o arcabouço fiscal pode favorecer a redução da taxa de juros e recuperar a confiança dos agentes econômicos na condução da política macroeconômica do governo, estimulando os investimentos. Mas, pelo visto, o ministro Haddad vai enfrentar no Congresso a dura oposição do seu próprio partido, viciado em gastos e ignorando limites, que considera o projeto restritivo e, que, portanto, impede o governo de “cumprir os compromissos de campanha”, leia-se promessas populistas e eleitoreiras.  Lula tem muita pressa para ampliar sua popularidade e o apoio da sociedade. A pressa, infelizmente, é uma péssima conselheira, quando se trata de uma estratégia de desenvolvimento. 

O anacronismo político de Lula manifesta-se também na sua resistência à desestatização de alguns setores da economia, entendendo que o Estado é a força central da economia, e não o grande supridor dos serviços públicos. O governo já suspendeu a privatização de algumas empresas que estavam na agenda de desestatização, pretende rever o processo de capitalização da Eletrobrás que reduziu o controle governamental da empresa, mudou a Lei das Estatais para poder distribuir os cargos de direção com aliados, e emitiu um decreto mudando o Marco Legal do Saneamento, para dar mais espaço às estatais de saneamento dos Estados, o que pode desestimular a mobilização de investimentos privados para a ampliação do esgoto sanitário no Brasil. Este é outro sintoma de que o presidente não se deu conta das restrições fiscais do Estado brasileiro, nem percebeu a enorme disposição e a capacidade dos investidores privados nas atividades produtivas, e mesmo na prestação de serviços públicos rentáveis. E de que ao Estado cabe concentrar os recursos públicos na prestação de serviços públicos, e atuar na regulação dos investimentos privados em áreas estratégicas.