Jean Marc von der Weid, agosto de 2023

Introdução:

Um esforço de planejamento de um programa para a promoção do desenvolvimento da agricultura familiar tem que ir além da identificação de políticas de curto prazo e pensar em mecanismos para prepararmos o futuro próximo ou remoto. Para isto, é necessário diagnosticar as ameaças ambientais, econômicas, sociais, financeiras e políticas que possam existir pairando sobre o presente e o futuro desta categoria social. A partir desta avaliação das condições externas é preciso fazer outro diagnóstico sobre as condições atuais da agricultura familiar para finalmente estudar o efeito das políticas públicas aplicadas nas últimas e sua relação com este último diagnóstico. 

É o que vou tentar fazer como contribuição para os companheiros e companheiras do atual MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar). Para evitar cansar os interlocutores será uma série de artigos que eu tentarei manter tão curtos quanto possível.

As ameaças:

Estamos vivendo, aqui e no resto do mundo, sob a ameaça de uma série de crises que se aceleram e que se alimentam umas às outras. Sem querer estabelecer ordens de importância ou de causalidade, me limito a afirmar quais são estas crises: ambiental, que pode ser subdividida em aquecimento global, perda de biodiversidade, destruição de recursos naturais como solo e água, poluições de solo, águas e ar, e outros; energética; alimentar; sanitária e financeira.

Todas estas crises já estão impactando a vida (e provocando a morte), tanto humana como animal e vegetal no planeta. E estão em processo de aceleração acentuada, algumas chegando ao que os cientistas chamam de “não retorno”, ou seja, elas provocaram mudanças em suas dinâmicas que retroalimentam a evolução em curso, independentemente da ação humana.

É importante, em primeiro lugar, lembrar que este conjunto de fenômenos que alteram as condições de vida do planeta não fazem parte de uma evolução natural, como foram outras grandes mudanças em eras geológicas passadas. O que estamos vivendo é resultado da ação humana e seus impactos sobre as condições ambientais. Por isto mesmo alguns geólogos já denominaram a era atual de antropoceno ou a idade da ação humana. Outros analistas deram outro nome à era em que vivemos: capitaloceno, ou era do capitalismo.

E como estão atuando estes fenômenos? O aquecimento global já nos levou a um aumento da temperatura média do planeta de 1º C, desde o início da revolução industrial no século 18. Este número foi alcançado em 2015 e está se aproximando de 1,5º C muito mais rapidamente do que previsto pelos cientistas do IPCC. Nos relatórios anteriores, se apontava um cenário onde tal índice seria alcançado em meados do século, se tudo continuasse igual do ponto de vista da emissão de gases de efeito estufa. Ocorre que a previsão era otimista (o que sempre acontece nos relatórios do IPCC, por mais que estejam anunciando tragédias) e, por outro lado, as condições pioraram, com uma aceleração do aumento de emissões de GEE acima do esperado, com exceção do breve hiato provocado pela pandemia da COVID. A data para batermos o limite definido no acordo de Paris para o aumento de temperatura, ultrapassando os 1,5º C, passou a ser meados dos anos 2030, sendo que os cientistas mais pessimistas ou mais realistas, já apontam para o ano de 2030, daqui a pouco mais de 6 anos.

Os efeitos do aquecimento já estão sendo vividos na forma de grandes diferenciais de temperatura, com verões quentíssimos (como agora nos EUA e UE, onde os termômetros neste verão estão batendo um recorde atrás do outro e chegando nos 53º C) e com invernos gelados, também com recordes negativos. 

Estas temperaturas elevadas são acompanhadas de uma enorme instabilidade climática, com chuvas diluvianas, tempestades de neve e granizo arrasadoras, tufões, ciclones e outras manifestações ambientais ocorrendo com maior intensidade e maior frequência. As ondas de calor provocam incêndios devastadores, mesmo sem a colaboração humana (e ela existe por todo lado, intencionalmente ou não), com destruição da biodiversidade e a intensa poluição do ar, às vezes muito longe dos locais onde eles são originados. Os incêndios há umas poucas semanas no meio oeste do Canadá, com a fumaça contaminando todo o nordeste dos EUA, de Chicago a Nova Iorque, são um bom exemplo. Outro foi a fumaça das queimadas da Amazônia fechando aeroportos em São Paulo, há dois anos. 

Um outro efeito de altíssimo impacto é menos perceptível para o comum dos mortais, menos para aqueles que moram em ilhas com baixas altitudes: o aumento do nível dos oceanos. Pequenos países insulares estão desaparecendo, sinistro prenúncio do que vai ocorrer nas áreas costeiras do planeta. 

Da última vez em que a Terra viveu com as atuais concentrações de GEE, o nível dos mares alcançou quase 10 metros a mais do que o nível atual. Por que não estamos com estes níveis mais altos agora? É só questão de tempo, infelizmente. O aumento da concentração de GEE não tem reflexo imediato no aumento da temperatura média do planeta, há um delay enquanto as grandes massas de terra e de água vão se aquecendo e as geleiras se derretendo. Ou seja, mesmo se interrompermos as emissões totalmente e imediatamente, o aquecimento vai continuar por um tempo e o impacto no aumento do nível dos oceanos também. Para impedir este processo seria necessário não só parar de emitir GEE como conseguir retirar GEE da atmosfera. E muito. Mesmo nessa hipótese superotimista, os cientistas calculam que os mecanismos postos em marcha com o atual aquecimento não serão revertidos rápido o suficiente para que cidades como Nova Iorque, Cidade do Cabo, Marselha, Alexandria, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e muitas outras escapem da inundação. E enormes regiões de costas baixas na Índia, China, Bangladesh, Filipinas, Indonésia, entre outras menores, seriam alagadas, deslocando perto de um bilhão de pessoas. E quanto mais GEE for emitido daqui para frente, mais as temperaturas subirão e mais cidades e áreas costeiras desaparecerão. E mais áreas agricultáveis serão inutilizadas. E mais destruição será provocada por mais e mais potentes ciclones e tufões e incêndios.

É uma visão trágica para o futuro, mas já é horrível no presente de muita gente.

Não vou me estender sobre quem é culpado pelas emissões de GEE. Todo mundo sabe que o CO2 emitido pela queima de combustíveis fósseis é o principal responsável do aquecimento global, sendo que Estados Unidos, União Europeia, China e Rússia tem a maior responsabilidade nestas emissões. E que o uso para movimentar carros, aviões, navios é a maior fonte de emissões. Mas é preciso lembrar que muito CO2 é emitido em vários outros empreendimentos, já que o petróleo é utilizado em quase todas as atividades industriais, quer como combustível quer como matéria prima para produtos plásticos, cosméticos, farmacêuticos, alimentares, informáticos e muitos outros. 

É importante notar que a agricultura convencional, a do agronegócio, também emite CO2 em grandes quantidades, sendo uma das maiores fontes de emissões de CO2 fora dos combustíveis fósseis, isto porque ela é responsável pelo desmatamento em larga escala. Neste quesito, o Brasil e a Indonésia são os maiores responsáveis, colocando-os como quinto e sexto entre os maiores emissores de CO2.  Finalmente, a agricultura é a principal responsável pela emissão do segundo gás mais importante na geração do efeito estufa: o metano. Há menos metano sendo emitido e se acumulando na atmosfera, mas ele tem um poder aquecedor 300 vezes maior do que o etano. É ainda a agricultura a responsável pelo terceiro em importância dos gases de efeito estufa, o óxido nitroso. Computando todas as fontes de GEE, alguns cálculos apontam para a agricultura como o setor com as maiores emissões, direta ou indiretamente, algo perto de 35%. O setor agroalimentar como um todo, envolve (além da agropecuária propriamente dita) a produção dos insumos, a industrialização dos produtos agrícolas e seu transporte e a formação de lixo orgânico derivado das sobras da alimentação caseira, em restaurantes ou nos mercados, lixo esse que, lançado em rios ou em depósitos ao ar livre, emite toneladas gigantescas de metano. Segundo alguns cálculos, o conjunto dos impactos diretos e indiretos do setor agroalimentar como um todo chega a pouco mais de 50% das emissões de GEE, bem acima das emissões provocadas pelo uso de gasolina e óleo diesel nos transportes terrestres, aéreos e marítimos. 

O aquecimento global impacta a agropecuária de forma brutal. Cada grau Celcius a mais na temperatura média do planeta tem repercussões muito significativas nas áreas cultivadas e de pastagens. Lembremos que a temperatura média planetária significa um balanço entre temperaturas muito baixas nos polos e muito altas nos trópicos. Uma temperatura média anual de 17,5º C no planeta implica em uma temperatura média de até 40º C nos verões das áreas mais quentes dos trópicos. Nas zonas produtoras tropicais ou temperadas, 1º C de aumento médio anual derruba a produtividade das culturas em valores que vão de 10 até 25% segundo o produto e a região. Isto sem levar em conta os efeitos indiretos do aquecimento, gerando instabilidade na oferta hídrica e na ocorrência de fenômenos atmosféricos como ciclones, tufões, geadas, secas e inundações.

Em um planeta com perto de 1 bilhão de pessoas passando fome, estas mudanças provocadas pelo aquecimento serão dramáticas. Sim, há cálculos que indicam que haverá um aumento de produção nas zonas mais frias, mas há um acordo que ela não compensará as perdas nas áreas mais quentes. 

Tomando o Brasil como exemplo, podemos esperar que os impactos serão totalmente negativos pois nos encontramos inteiramente dentro da zona tropical ou subtropical. Já estamos vivenciando este processo, com os impactos cada vez maiores dos verões mais quentes em todo o território. Por outro lado, estamos muito ameaçados pelo processo de desmatamento na Amazônia, que se aproxima perigosamente do momento em que a floresta ainda existente perde as condições de se reproduzir e inicia uma degradação “natural” no caminho de tornar-se uma savana seca ou mesmo uma zona desértica (como acontece no Saara ou no Atacama, desertos que estão na mesma latitude da Amazônia). A destruição da floresta Amazônica não tem apenas (e já é muito) um impacto no aquecimento global, ela vai anular o fluxo da umidade gerada por este ecossistema e que irriga naturalmente toda a nossa agricultura do centro-oeste, do sudeste e do sul. Já o desmatamento do Cerrado está impactando o fluxo de água nos grandes rios gerados nesse bioma e que se dirigem para o norte, o Tocantins e o Araguaia, com efeitos significativos na geração de energia elétrica.

Saindo da ameaça representada pelo aquecimento global caímos na ameaça da crise energética. Os combustíveis fósseis que tanto contribuem para a geração de GEE estão em processo acelerado de desaparição. Não vou me estender neste tópico, que tratei em outros artigos, limitando-me a apontar para a crise anunciada para meados desta década (nos próximos dois a três anos!), quando os preços do petróleo e do gás deverão voltar aos patamares dos anos 2000, que levaram à crise financeira de 2008. Se precisamos chegar rapidamente a zerar as emissões de GEE, a crise da produção de petróleo poderia ser uma boa notícia. Entretanto, o mundo não se preparou para uma queda brusca na oferta de petróleo que será acompanhada por um aumento também brusco dos preços desta oferta residual. O choque da crise do petróleo vai se fazer sentir em toda a cadeia produtiva mundial, além de impactar os meios de comunicação.

Para completar este cenário crítico é preciso lembrar da ameaça representada pela paulatina desaparição das reservas de fósforo e de potássio em todo mundo. Estes elementos são essenciais para a vida das plantas. No modelo do agronegócio eles são aplicados no solo ou nas folhas sob a forma de adubos químicos solúveis. Este procedimento é de imensa ineficiência, pois calcula-se que menos de 50% dos insumos sejam aproveitados pelas culturas, enquanto o resto é levado pelas águas de chuva ou de irrigação e vão parar em rios, lagos, aquíferos e lençóis freáticos ou mar, com enorme impacto na eutrofização destas reservas hídricas.  

Implicações destas ameaças para a agricultura:

A ação destes diferentes fenômenos sobre a produção e distribuição de alimentos no mundo (e no Brasil) vai ser a de reduzir a oferta global de alimentos e torná-los mais caros pelo aumento dos custos de adubos, agrotóxicos e transportes, além do efeito da lei da oferta/procura. Avalia-se que o comércio internacional vai ser reduzido, quer porque muitos países vão priorizar o abastecimento interno frente à escassez, quer porque o custo do transporte vai ficar muito mais elevado. É um movimento de contra-globalização, revertendo uma tendência dominante desde o pós-guerra mundial.

No caso brasileiro, já temos problemas com o abastecimento interno de alimentos, já que somos, cada vez mais, um país centrado na produção e exportação de milho e soja (para ração) e carnes. Importamos muito do que consumimos e estamos em pleno processo de mudança dos hábitos alimentares entre os consumidores de menor renda, abandonando produtos como arroz e feijão, milho (fubá) e mandioca e aderindo ao consumo de processados e ultra processados, com base no trigo (pão e massas). Do ponto de vista de uma dieta recomendável estamos muito mal na fita e os efeitos sobre a saúde pública são pesados.

Com as crises citadas se abatendo sobre nós teremos dificuldades de importar o necessário, tanto para a dieta ideal como para a atual dieta deletéria predominante. Teremos que fazer uma brutal conversão da nossa agricultura tanto no direcionamento dos produtos para o mercado interno como no modo de produzi-los.

Vai ser necessário controlar os desmatamentos, não só da Amazônia e do Cerrado (os ecossistemas mais ameaçados e com efeitos mais devastadores), mas em todos os biomas. Esta não só vai ser a nossa principal contribuição para conter o acúmulo de GEE na atmosfera, como pode ser importantíssimo para retirar GEE da atmosfera, se adotarmos a política de reflorestamento maciço. E, é claro, para manter em atividade os “rios voadores” que garantem a nossa produção nas áreas mais importantes da nossa agricultura.

A mudança no modo de produzir vai se impor, tanto pelo aumento do custo dos insumos industriais (adubos químicos e agrotóxicos, quase tudo importado atualmente) como pela necessidade de conter a emissão dos GEE emitidos pelo agronegócio (além do CO2), o metano e o óxido nitroso. Resta saber se vamos nos antecipar às crises e organizar uma transição à tempo ou se vamos esperar que tudo desabe para ver como resolver.

Mas como produzir de forma sustentável no formato das mega plantações que hoje dominam a agricultura brasileira? A alternativa conhecida para o modelo agroquímico e motomecanizado é a agroecologia. O agronegócio pode adotar esta proposta? Dificilmente, já que a característica do modelo agroecológico é o uso da biodiversidade, tanto a agrícola como a natural, para substituir o uso de insumos químicos externos e controlar pragas, doenças e invasoras restabelecendo o equilíbrio ambiental. Substituir plantações em monocultura de soja, para dar um exemplo, ocupando dezenas de milhares de hectares, por sistemas diversificados com vários produtos agropecuários dividindo os espaços produtivos inibe o uso de maquinário em grande escala. E é nesta super produtividade do trabalho que reside o lucro do agronegócio.

Quando a crise provocada pela queda do sistema soviético abalou a agricultura cubana a resposta do governo foi distribuir as terras das grandes monoculturas estatais de cana de açúcar em lotes atribuídos a neocamponeses familiares. Não teremos alternativa senão fazer o mesmo ou viver com uma crise gigante, social e econômica, atingindo a maioria da população. A fome é um estopim para a instabilidade social e política e, em outros países, levou a movimentos de revolta, nos idos dos anos 2000.

Exemplos em todo o mundo apontam para a agricultura familiar em pequena escala como a mais bem adaptada para incorporar os princípios da agroecologia. Mas substituir o agronegócio pela agricultura familiar agroecológica implica em radicalizar muito (e corrigir muito) o processo de reforma agrária iniciado por Fernando Henrique e seguido nos mesmos moldes por Lula (Dilma reduziu a reforma a quase nada, e Temer/Bolsonaro liquidaram a fatura). Avalia-se que foram assentados perto de um milhão de famílias entre 1994 e 2016 e que mais da metade abandonou seus lotes por falta de condições de produção e de escoamento das safras, por endividamento e falência ou por falta de infraestruturas econômicas e sociais básicas. Para preparar a agricultura do futuro precisaremos fazer muito mais e muito melhor do que no passado.

 Segundo alguns cálculos, uma agricultura centrada na produção familiar agroecológica implantada em todo o espaço rural brasileiro implicaria em garantir terra e muitos outros fatores produtivos e sociais para 20 milhões de famílias dotadas com 10 hectares cada uma. É um desafio gigante para o nosso futuro, implicando em forte recampesinação da nossa população. Quando nos damos conta de que a evasão rural não foi contida pelos governos populares e que o número de agricultores familiares caiu perto de 10% entre os censos agrários de 2006 e 2017 podemos medir o tamanho do desafio. 

Para nos prepararmos para estas crises temos que pensar no que é possível fazer desde já, visando mitigar os impactos quando eles ocorrerem.