Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes

 

Os 110 anos de Vinicius de Moraes, transcorridos nesse 19 de outubro, não podem passar em brancas nuvens. Aliás, não existem mais brancas nuvens.  O aniversário de um dos maiores poetas brasileiros não deve passar em branco. Nada de chamá-lo de “poetinha”, ainda que afetuoso apelido para tantos que o conheceram de perto e de longe. Melhor seria chamá-lo de “poetão”! É o que foi, ou o que é, Vinicius de Moraes: um grande poeta! Na moral, como dizem os jovens. E, como sabemos, além de poeta, compositor, cronista e diplomata, talvez nessa ordem.  

Em 1933, ainda em plena iconoclastia do Modernismo, o poeta estreia com “O caminho para a distância”, livro triste, elegíaco, de versos que se alongam como estranhas liturgias místicas. Mais adiante, após ter superado essa fase juvenil e, a seu modo, neossimbolista, Vinicius consolida-se por uma melancolia equilibrada, e tanto é assim que, por ocasião de sua morte, em 1980, Drummond, numa bela homenagem, aparece na televisão recitando um poema seu tocado de sabedoria: o “Poema de Natal”, cuja tristeza vem compensada por uma dicção classicizante: “Para isso, fomos feitos: / Para lembrar e ser lembrados / Para chorar e fazer chorar / Para enterrar os nossos mortos — / Por isso temos braços longos para os adeuses / Mãos para colher o que foi dado / Dedos para cavar a terra. […] Não há muito que dizer: / Uma canção sobre um berço / Um verso talvez de amor / Uma prece por quem se vai —”. De fato, um poema de alto teor humano e decerto um dos mais antológicos do autor.

De seu modernista tempo brasileiro, o poeta aproveitou sobretudo a coloquialidade, uma leveza de vocabulário, que não exclui a gravidade, e o que de melhor havia na poesia contemporânea de então. Nunca foi apenas intuitivo ou puramente sentimental (como seu lado pitoresco e pessoal levava a crer): suas obras atestam um leitor (sic) intenso e atento, um geômetra que deixava as suas mãos serem guiadas pela paixão. Essa paixão que levou para algumas das mais belas composições da música popular brasileira. Como vários outros poetas de seu tempo, viu nas canções uma trincheira para proporcionar às multidões uma poesia que, não raras vezes, fica enclausurada entre os eruditos. Com isso, deve ter causado muita inveja a colegas de literatura, uma vez que todos sonham, sem exceção e sem o confessarem, com uma acolhida pública que os reconheça e os louve. É como escreveu Nietzsche: “O espírito do poeta quer espectadores”.

Vinicius ousou, numa sociedade conservadora e careta de meados do século 20, unir a poesia ao cotidiano. Como quem não quer nada, fincou em nossa memória versos imortais, alguns dos quais levados para a MPB e hoje já pertencentes à História, a exemplo destes que são uma confissão existencialista e filosófica: “Às vezes, quero crer, mas não consigo. / É tudo uma total insensatez. / Aí pergunto a Deus: — Escute, amigo, / Se foi pra desfazer, por que é que fez?”. Se Deus for poeta bem que gostará, se não da dura pergunta, desta imortal aliteração num decassílabo: “É tudo uma total insensatez”…

Com a criatividade que possuía, Vinicius rejuvenesceu o soneto em língua portuguesa. Tornou-o plástico, deu-lhe novas métricas, enxertou-lhe de imagens inesperadas e de rimas que se interpõem entre a tradição e a vida presente.  Vinicius é grande nos detalhes inventivos e nos meandros temáticos do que o inspirava, fosse uma simples rosa, um fato político-social, um estado de alma (contrição, devoção, intimidade, paixão…), fosse uma homenagem a artistas de sua admiração e de seu convívio (suas parcerias merecem um estudo à parte).

Como o historiador francês Jules Michelet, que trouxe o povo e as próprias emoções pessoais para dentro de uma obra incontornável e fez questão de dizer que “amou mais”, enquanto outros foram “mais judiciosos, brilhantes e profundos”, Vinicius talvez pudesse se orgulhar dessa mesma romântica postura. Também ele, de certa forma, “amou mais”. E fez com que no Brasil, país de poucos poetas e muitos versejadores, a melhor poesia fosse apreciada sem um sabor utópico e sem um travo cerebrino. Com seu apurado sentido estético, e não só estético mas amoroso, imprimiu beleza e sensibilidade às suas crônicas, às suas canções (muitas das quais, como a hiperfamosa “Garota de Ipanema”, dentre as melhores que já se fizeram no Brasil), e até talvez ao trabalho de diplomata, ofício que lhe valeu, da parte dos gorilas da ditadura militar, o epíteto de “vagabundo”. Os gorilas passaram, mas Vinicius, aos 110, continua com a gente na melhor “vagabundagem”: a da arte que não morre nunca!