II – Petrônio Portela
No final de 1964 – mesmo inocentado pela Comissão Geral de Investigações – por conta do meu passado de militância política estudantil, fui demitido da SUDENE. Meu regime de trabalho era “celetista”, o que permitia a demissão, ainda que sem “justa causa”.
Jovem, cabeça cheia de teorias e nenhuma experiência de vida prática, sofri um grande golpe. Sem traquejo nem gosto para advogar, tentava sobreviver ensinando inglês, quando Leonides Alves, piauiense, meu companheiro do III Curso de Técnico em Desenvolvimento Econômico – TDE, porta de entrada para a SUDENE, me indicou ao governador do seu Estado para representá-lo junto à autarquia.
Naquele tempo de comunicações precárias, o Piauí era um rincão remoto, que perdia oportunidades de beneficiar-se de programas de incentivo por não informar-se deles em tempo. Um caso emblemático foi o de um projeto de “construção de poços e aguadas”, em que o cheque em favor do Estado chegou a ser cancelado, por não aparecer ninguém para recebê-lo. E este foi o meu primeiro serviço, bem elementar, na verdade: apanhar um novo cheque e levá-lo ao governador…
O chefe do Estado era Petrônio Portela, e viajei a Teresina para conhecê-lo, bem como ao seu elenco de colaboradores. Após uma necessária escala em Fortaleza, e uma sofrida noite em pensão modesta, roído pelas muriçocas, cheguei ao meu destino, e indo direto ao Palácio de Karnak, encontrei-o reunido com os seus auxiliares. A estes fui imediatamente apresentado com louvores, e após um domingo de ócio indesejado, enfrentando baratas no velho Hotel Piauí, à beira do rio Parnaíba, visitei alguns, como os secretários de Planejamento e Segurança, para colher suas demandas. E voltei ao Recife.
Dias depois, o governador veio à sede da SUDENE, para a reunião do seu Conselho Deliberativo. Almocei com ele e sua comitiva, e ele me pediu para redigir um ofício indicando-me como seu representante junto à autarquia. Já havia falado com o superintendente a esse respeito.
Quando, no dia seguinte, dirigi-me à Superintendência, levando o ofício, fui surpreendido com a observação do chefe de gabinete:
– Pelo que estou sabendo, o governador tornou “insubsistente” este ofício. De qualquer modo, deixe-o comigo.
Desconfiado, procurei meu amigo Leonides, para saber o que havia. E ele, muito constrangido, me reportou: haviam apresentado ao superintendente a minha “ficha” política. Ex-dirigente da UNE (União Nacional dos Estudantes), irmão, cunhada e cunhado comunistas, inabilitado, portanto, para assumir o posto. O governador mandou pedir muitas desculpas, fui pago pelos dias de trabalho e reembolsado das parcas despesas feitas com a viagem.
Não guardo mágoa do governador Petrônio Portela pelo inesperado recuo. Não era fácil resistir às imposições dos militares naquele tempo. Depois, como senador, teve papel importante nas negociações para a redemocratização do país. Mas cabe-me reportar, para reflexão, um fato imediatamente posterior à minha meteórica experiência como assessor do governo piauiense.
De volta ao limbo dos desempregados, habilitei-me à Fundação para o Desenvolvimento Industrial do Nordeste – FUNDINOR, recém-criada para fomentar, ao lado da SUDENE, investimentos empresariais produtivos na região. Era de inspiração americana e de industriais brasileiros, tinha recursos da USAID (United States Aid for International Development) e do SESI nacional. No processo de contratação, fui encaminhado para entrevista com o senhor George Gelhorn, da Missão Americana no Nordeste.
Mister Gelhorn, que tinha idade para ser meu avô, havia sido, segundo soube informalmente, comandante de um porta-aviões na II Guerra Mundial. Era um típico “WASP” (White, Anglo-Saxon, Protestant) e, possivelmente, formava no time dos “falcões” dos EUA. No entanto, sabedor do meu passado, não se opôs à minha contratação, que foi consumada.
Fiz algumas viagens, e participei de algumas reuniões com Mister Gelhorn. E, apesar da diferença quase abissal de idade, do limitado português dele e do meu inglês ainda bisonho, sempre nos demos bem. Coisas do mundo, meus amigos. Como cantou Paulinho da Viola, elas estão aí. Só que precisamos aprendê-las.
Continuam suas belas memórias, Clemente. Não as interrompa. Vá em frente porque são textos excelentes e documentos importantes da nossa época.
OBRIGADO, AMIGO. SIGO SEU CONSELHO. TENHO MAIS MEIA DÚZIA DE “ECOS”!
Pelo que estamos percebendo, os temíveis ventos de agosto estão sendo generosos aos leitores da Revista Será?
Um depoimento importante. E bonito. Pois nem todos são arrastados sempre pelos ventos da polarização. Escreva mais recordações assim, Clemente.
Obrigado, amigos!
Aguardem os próximos “ecos”!
Oi Clemente
Sua história me trouxe ao mundo real, em meio ao surrealismo que vivemos nos dias de hoje. Naqueles tempos, a guerra era real, dolorida mais real. Hoje sua crônica nos conforta.
Pois é, Aécio. O quadro hoje é tão embaralhado e sombrio que chego a desanimar. Só espero que estes registros sirvam de alguma referência, ao menos para questões humanas, em boa medida atemporais.
Grato pelo retorno.