Eurico Pincovsky

Recife, partida da REFENO Recife – Fernando de Noronha.

PREÂMBULO

Navegar é preciso. Esse era o nosso lema. Já anunciava Fernando Pessoa.

No momento em que escrevo, tenho a absoluta convicção de que o mar é o melhor endereço para aqueles que buscam paz, fraternidade e solidariedade. Vivenciamos clima tenso, conturbado pelas eleições deste ano no Brasil (2018). Repleto de ofensas, rupturas, desagregação. Adjetivos que não experimentamos quando vamos ao mar.

Mas não lhes escrevo para lamentar. Venho com uma proposta. Talvez à moda grega. Convido-os a conhecer o que realmente se tem no mar. A bordo de um veleiro. Desprovido de conforto. Sem os luxos e as amenidades da terra. Velejador tem dessas coisas. Adora arregimentar neófitos. Fazer proliferar essa virose incurável: a paixão pelo mar. Sonho maior ainda persigo. Viciar a minha pequena Bia. Única filha, de 5 anos. Com quem sonho singrar os mares da vida, por muito tempo. Tentando ensinar a ela absolutamente tudo do pouco que aprendi.

A ideia aqui é apresentar, com toda a humildade dos ignorantes, o que vi, vivi e senti. Navegando nesse mar tempestuoso de palavras, tentarei expor a travessia Recife – Fernando de Noronha, a bordo de um veleiro.

Aviso aos novos navegantes: o vício pelo sal é bom e sem volta. Alerta foi dado!

INTRODUÇÃO

Fomos chamados ao mar. Convite irrecusável, que jamais pode ser negado – como disse o poeta laureado inglês, John Masefield, em “Sea Fever”. A missão, rumar a Fernando de Noronha. Regata de 300 milhas. Maior competição, ou melhor, maior confraternização oceânica brasileira, que em 2018 completou 30 anos de existência. Era 29 de setembro. 10 marujos a bordo do catamarã Jahu 2, um puro sangue Manelis de 42 pés de muita valentia e imponência. Espartano, como todo bom Manelis, mas seguro e rápido. Nele iniciamos o nosso sonho, singrar o Atlântico. Desbravamos as águas azuis. Um azul intenso, molhado e salgado, mas legítimo. O azul de Carlos Pena Filho.

Partida anunciada. Marco Zero do Recife repleto de famílias que foram prestigiar o espetáculo da largada. Crianças, adultos e idosos, todos torciam e vibravam. Mesmo contagiado pela virose salina, reconheço a beleza do show, emoldurado pelas águas dos rios Beberibe e Capibaribe, que “juntos formam o Atlântico”. Autêntica mistura pernambucana.

Emoção. Expectativa. Atenção redobrada ao vento, ao cronômetro e aos barcos. A apoteose da largada requer precisão cirúrgica. Eram 61 barcos partindo, em suas categorias. Todos com o mesmo objetivo: alcançar a Ponta da Sapata.

Platão dizia haver três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que se lançam ao mar. Estamos nesta última. Não nos envaidece, mas nos honra. Ser um homem do mar impõe desafios. Que por dever de ofício, cumprimos à risca. O primeiro deles: solidariedade. Rumo 60, marujos! Atenção aos panos! Que Eolo nos seja generoso. Partida anunciada. Bons ventos!

O BARCO

Catamarã de madeira, robusto. Inicialmente batizado pelo seu construtor, o famoso Manuel Português, com o nome “Samurai”. Com a mudança de propriedade, Luís Moriel alterou o nome para “Jahu 2”, perpetuando legítima homenagem ao “jahuzinho”, outra obra prima do Sr. Manuel, um catamarã de aproximadamente 30 pés, que fez história em Pernambuco. Aterrorizando os velejadores, com a mania de vencer as regatas.

O Jahu 2, seu irmão maior, outra obra prima da tradicional sapiência portuguesa materializada por Manuel, impõe respeito. São 42 pés de linha d’água. 19 metros de mastro. Provido de velas fabricadas com tecidos exóticos: quando armadas, impõem respeito a qualquer desavisado. Nos cascos, nenhum luxo. Estritamente o básico necessário: uma privada manual no casco de boreste, e camas simples no de bombordo. Na cabine central, mesa de navegação, quadro elétrico, rádio, uma mesa rebatível que vira cama, e um pequeno fogão com duas bocas. E só. Esse é o Jahu 2.

A TRIPULAÇÃO

Como será apresentado a seguir, o barco teve uma equipe heterogênea, na idade e na formação. Mas com uma característica comum: a simpatia e a paixão pelo mar. Inicialmente nem todos se conheciam. Essa incógnita sempre me perturbava. Ficava a pensar: será que teremos algum conflito? Será que são pessoas legais para uma travessia desse porte? Durante minhas inúmeras viagens de trabalho que antecederam a regata, esse “fantasma” vagou em meus pensamentos, nos momentos livres e de solidão. Em contrapartida, jamais imaginava, nem em meus melhores sonhos, que encontraria pessoas tão agradáveis, gentis e educadas como a equipe do Jahú 2. Os jagunços, como nos batizamos.

O Jahú 2 foi comandado pelo querido amigo Paulo Collier de Mendonça, advogado de profissão (nas horas vagas), velejador por paixão e convicção. Amigo que conheci na infância, praticando aeromodelismo no saudoso Aeroclube Encanta Moça, no Pina, Estado de Pernambuco. Com quase dois metros de altura e outros tantos de envergadura, tratou de conduzir o barco em seu mais especial estilo: gentileza e cordialidade, sem contar com diversos outros predicados que, pelo grau de amizade e estima, prefiro agora omitir, de modo a não transparecer uma bajulação gratuita. Mas, que se diga de passagem, nosso comandante merece todos os elogios.

Luís Moriel, proprietário do Jahú 2, comandante incorporado à tripulação nas últimas horas, experiente marujo, “regateiro” dos bons. Velejador querido e benquisto por onde anda. Renomado. Como bom baiano, tem suas particularidades: é vegetariano e arquiteto, uma combinação bastante suspeita para qualquer desavisado. Mas tem a sua esposa, Fernanda Sarinho (Nanda para os íntimos), como principal defensora. Nanda estava a bordo. Única mulher da tripulação. Somente por essa informação, já se tem a medida de quem efetivamente teve a última palavra no Jahú 2. A “almiranta Nanda”, como bem conhecida no meio náutico, é uma mulher “marinizada”. Brava. Destemida. Encontrou em Moriel sua alma gêmea salgada. Formaram um dos casais, na vela, mais bem sintonizados.

Pedro, filho de Moriel, biólogo e pesquisador de tubarões. Uma combinação perfeita para a vida a bordo. Garoto alto astral, companheiro de primeira hora, tranquilo e disposto. Era o mascote da tripulação. Consequentemente, os piores serviços ficaram sob a responsabilidade dele. Dediquei tempo escutando as suas aventuras amorosas e profissionais. Estas últimas impressionantes, de tirar o fôlego algumas vezes. Pedrinho mergulha para capturar tubarões, com vistas a introduzir chip de rastreamento e  coletar material biológico para estudo da espécie. No campo amoroso: hilárias e interessantes, as típicas aventuras de jovens em busca de “amores emergenciais”, como bem catalogou Gabriel Garcia Marquez.

Geraldinho, engenheiro de pesca e surfista. Homem maduro, amigo da família de Moriel. Estava um pouco tímido. Mas sempre disponível, tranquilo, cordial e simpático. Preparou deliciosos sanduíches para a tripulação. Com o tempo, integrou-se maravilhosamente bem com todos.

Mouco, agrônomo e velejador. Era o decano da tripulação. Homem de elegância singular. No auge dos seus cabelos prateados, apresentava disposição para qualquer faina. De poucas palavras. Mas com um senso de oportunidade invejável. Cativou a todos com a sua maneira discreta e atenciosa. Comportamento típico dos sábios.

Marcos Duarte, nosso amigo MD. Médico renomado e velejador convicto. Como todo bom baiano, forjado de uma simpatia e malemolência características. Portador da mais tradicional tranquilidade baiana, aliada à capacidade de agregação e de agradar a gregos e troianos, MD incorporou-se ao time rapidamente. Usou a estrela vermelha da Heineken como veículo de aproximação. Acertou o alvo com precisão germânica.

Uldis, industrial e aventureiro. Companheiro e fiel jagunço. Carente de gritos, adorava receber a tradicional ordem, em elevados decibéis: “Caça a porra da genoa”! Personagem singular dessa equipe. Adora uma boa conversa, preferencialmente acompanhado de algumas Heineken’s geladas. Jagunço sempre preocupado com todos os tripulantes. Atento e disponível para qualquer missão. Sobretudo para ajudar um amigo. O mais rústico tripulante, capaz de se adaptar às mais diversas situações, com experiência em mar e montanhas.

Paulo Rocha, engenheiro e velejador. Homem culto e amigo que conheci na vela. E de tanto velejarmos juntos, decidimos comprar barcos maiores. Amizade e intimidade abrem espaços para alguns atrevimentos, entre eles, seu apelido: Lunga. Com aparência abusada, tenta ser rústico e antipático. Mas felizmente não logra êxito, restando apenas o apelido. É um amigo da melhor qualidade, por essa razão prefiro também restringir meus comentários.

Finalmente, restaria um comentário sobre a minha personalidade, o que nada me encoraja a fazer. Então, refiro-me apenas como economista e velejador insone.

Conseguimos reunir pessoas de diversos locais, como Uldis (de São Paulo), MD (São Paulo/Petrolina/Salvador) e Mouco (Petrolina). MD tem ainda essa outra característica, o homem que mais se divide: uma linda filha e trabalho em São Paulo, residência e trabalho em Petrolina e, finalmente, veleiro em Salvador.

Pelo que se viu, uma equipe invejável. Privilégio que tivemos, amigos que conquistamos.

A REGATA

O Jahú 2 não seria o barco para um mero e despretensioso passeio de Recife a Fernando de Noronha. Seu DNA não condiz com passeios lentos…

Os minutos que antecedem a largada são os mais longos e chatos. Não se relaxa. Não se contempla os passantes. Atenção é redobrada às velas e ao cronômetro. Silêncio absoluto no barco. Qualquer zoada atrapalha o comandante, atento ao rádio e às orientações passadas pelo proeiro.

Largada dada…ufa! O majestoso Jahú 2 impõe a sua valentia, zarpando do Recife, deixando apreensivo o coração daqueles que ficam esperando notícias da chegada.

O vento predominante foi sudeste moderado, com rajadas de 25 nós, mas mantendo-se por volta de 15 nós ao longo do percurso. O Jahú 2 navegou em alta velocidade. Um pouco acima, inclusive, do esperado. Primeiro incidente, por volta das 16h00: quebrou a folha do leme. Missão rapidamente desempenhada pelo Pedrinho. Como antecipei, as piores missões a ele foram democraticamente apresentadas para cumprimento.

Navegação retomada. Sol se pondo. A lua nesta primeira noite custou a aparecer. Mas em compensação, uma linda noite estrelada se descortinava. Dando espaço para se ver (ou imaginar) onde estavam alguns planetas e as estrelas mais conhecidas.

Durante a noite, solidão total. Vestimos as roupas de tempo, definimos os turnos, e finalmente jantamos. Enquanto isso, o Jahú 2 singrava o Atlântico a pleno vapor, navegando acima de 13 nós, estourando todas as ondas que pela proa se apresentavam. O vento apertou um pouco, as rajadas chegavam com maior frequência. Mas nada assustador. Tudo como era previsto, exceto a velocidade do Jahú 2, sempre atrevidamente um pouco acima. Atenção redobrada ao rádio. A qualquer momento poderia ser apresentado pedido de socorro.

O sol resolve aparecer. O domingo se apresenta, mas lamentavelmente para o Jahú 2, poucos minutos lhe restam… Por volta das 5 da manhã, novo incidente ocorre. Dessa vez, fatal para a continuidade do barco na regata. Uma rajada o elimina de vez, com a quebra do mastro. Um impacto enorme, seguido de batidas assustadoras causadas pela ruptura de estais e o choque da retranca na cabine central. Nesse momento, eu estava nessa cabine, com Pedrinho e Nanda. Um tremendo susto, e a preocupação imediata: algum acidente com a tripulação?

Felizmente, nenhum ferimento. Apenas a tristeza de não ter alcançado a Ponta da Sapata gloriosamente a bordo do Jahu 2, com a companhia de pessoas tão agradáveis.

A EXPERIÊNCIA

Velejar no Jahu 2 foi, sem dúvida, uma experiência única. Não se trata de barco com “frescuras” e amenidades, é um valente barco de corrida, daqueles que todo bom velejador deseja conhecer, e inveja aqueles que já desfrutaram de tal prazer, improvável de ser bem descrito. A REFENO é um sonho. Daqueles que anualmente devem ser renovados. É a regata mais esperada pelos brasileiros, muitos passam o ano se programando e se preparando. Realmente, não se trata de empreender uma travessia qualquer. Estudo, planejamento, preparo do barco e entrosamento da tripulação com o barco são ingredientes essenciais para o pleno êxito.

Chegar à Ponta da Sapata é uma sensação inexplicável. Que pudemos ter em 2018, graças à solidariedade dos capitães Hans Hutzler e Rafael Chiara. Eles comandavam os catamarãs Aventureiro 3 e o Algo+, respectivamente.

O transbordo do Jahu 2 para os barcos foi outra experiência marcante. Fomos nadando do Jahu 2 para Aventureiro 3 e o Algo+, em manobras precisas de homem ao mar, executadas com maestria pelos Capitães Hans e Rafa. Tudo ocorreu da melhor forma possível. Estávamos a cerca de 100 milhas da costa de Natal/RN. Naquele momento, o sentimento de frustração era grande. Mas para levar o Jahu 2 de volta a bom porto, aliviar peso era a melhor alternativa. Razão pela qual metade da tripulação passou para os outros barcos. O Aventureiro 3 acolheu Lunga, Uldis,  Mouco e ainda uma vaga foi minha. O Algo+ deu carona ao nosso amigo MD.

Seguimos a regata a bordo do Aventureiro 3, um Helia 43, catamarã francês construído pelo estaleiro Fontaine Pajout, de alta tecnologia e conforto. A tripulação do Aventureiro 3, liderada por Hans e sua esposa Karina, nos acolheu impecavelmente, pelo que nos cumpre registrar nosso agradecimento e reconhecimento.

Em que pese não tenhamos alcançado a Ponta da Sapata a bordo do Jahu 2, chegamos em Noronha com maestria. E no dia da premiação, entregamos o troféu de “fair play” aos Comandantes Hans e Rafa, que dedicaram algumas horas da regata na operação de resgate daqueles marujos. Um pequeno reconhecimento a esses homens do mar, que não se furtaram ao verdadeiro compromisso da solidariedade.

Pois bem, a REFENO acontece todo ano. E as experiências e a vontade de participar se renovam. Velejar é um vício delicioso. Eu avisei.