Clemente Rosas

VII – Paulo Pontes

Voltando à Paraíba em 1962, ao final do meu mandato na diretoria da União Nacional dos Estudantes, para concluir o meu curso de Direito, travei conhecimento com um rapaz franzino, de grossos óculos, pouco mais jovem do que eu, que trabalhava na Rádio Tabajara, emissora do Governo do Estado.  Fazia programas ligados a artes cênicas, “sketches” para manifestações estudantis, reportagens, entrevistas.  Por minha relativa notoriedade de ex-dirigente da UNE, fui convidado por ele para alguns debates com professores e intelectuais da província.  E logo percebi, pela conversa, pela postura, pelo conhecimento transparente de técnicas teatrais, que se tratava de alguém diferenciado, a merecer atenção.

(De sua origem modesta, suas agruras de infância, só fui tomar conhecimento depois.  Era filho de um enfermeiro de Santa Rita, cidade da Grande João Pessoa que abrigou, por muitos anos, uma fábrica de tecidos, onde meu pai trabalhava como administrador das propriedades rurais da empresa.  Até os oito anos, tinha uma deformação nos dois pés da qual só se curou pela cirurgia.  Meu pai o conheceu nesse tempo, e conviveu bem com ele depois, contando-lhe “causos”, que ele aproveitou em suas peças.)

Vivíamos um momento de grande efervescência cultural e política, com o Movimento de Cultura Popular – MCP revolucionando o Recife e os Centros Populares de Cultura – CPCs, criação da UNE, espalhando-se por todo o país.  A perspectiva era usar as manifestações de cultura popular, e a alfabetização de adultos, para conscientizar as massas. E o velho PCB, ao qual eu estava ligado, participava intensamente dessas campanhas, ao lado da JUC – Juventude Universitária Católica.

Em tal contexto, o Partido resolveu promover, no Rio, uma reunião nacional de militantes nessa área, para troca de experiências e orientação.  E a Direção Estadual decidiu que eu seria a pessoa indicada para tal missão.  Mas, por escrúpulo de honestidade, ponderei que meu envolvimento era apenas com a literatura.  Nada entendia de teatro ou cinema, os instrumentos mais fortes para aquele tipo de trabalho político.  O meu recomendado seria Paulo Pontes.

Os velhos quadros do Comitê Estadual do “Partidão” objetaram:

– Mas ele não é um dos nossos!

E eu contestei, convicto:

– Não tem nada, fica sendo…

(A mesma manobra havia feito comigo Wladimir Carvalho, o cineasta consagrado de hoje, um ano antes, quando fui participar de um seminário estudantil na Bahia: deu-me uma carta de apresentação aos “companheiros”, e assim me recrutou, sem prévia combinação.)

Conversamos com ele, e o “camarada” Paulo foi ao encontro devidamente credenciado.  Dei-lhe uma carta para Marco Aurélio Garcia, colega da UNE e também companheiro do PCB, pedindo que o apresentasse ao Vianinha (Oduvaldo Viana Filho), Armando Costa e outros integrantes do CPC.  Depois do evento, o gaúcho Marco Aurélio me escreveu, em seu habitual tom chistoso, afirmando que “o paraibano que eu mandara era ‘bom da gota’”.

Sempre me felicitei por decisão tão acertada.  Paulo estreitou contato com o pessoal do CPC, e logo depois transferiu-se para o Rio.  Passou dificuldades, morou um tempo com meu irmão, então em vida clandestina, no apartamento de uma velha profissional do sexo aposentada, mas acabou vencendo, pela chama da sua inteligência.  As peças “Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come”, “Gota d’Água”, “Brasileiro, Profissão Esperança”, “Um Edifício Chamado 200”, foram fruto dessa parceria, que envolveu também Ferreira Gullar e Chico Buarque.

Quando João Agripino foi eleito governador da Paraíba, em 1966, Paulo foi contratado para fazer uma peça sobre o nosso Estado natal, e o fez com brilhantismo.  PARAÍ-BÊ-A-BÁ, um painel alegre e pitoresco da história paraibana, apresentando seus heróis, escritores, artistas, cangaceiros, tipos populares e doidos mansos, foi sucesso local e nacional.  No tempo em que fixou-se em João Pessoa, para produzir a peça, convivemos bastante.  Passou as festas de fim de ano comigo, como se fosse um parente nosso, na casa de praia de minha família, para onde íamos todos, invariavelmente, a cada verão.

Mais tarde, visitei-o várias vezes no Rio, ele já casado com Bibi Ferreira.  E só fiquei sabendo bem depois que, nessa ocasião, quando as coisas ficaram feias após o AI-5, eles abrigaram, numa granja de Bibi, meu irmão foragido.  Conversávamos sobre os seus planos: encenar no Brasil a peça “O Homem de La Mancha”, levar ao palco o romance de Astúrias, “O Senhor Presidente”, e até sobre uma peça de dura crítica ao comercialismo da televisão (“Dr. Fausto da Silva”), não representada suponho mesmo que por causa desse melindroso tema.  (Nela, um apresentador de TV decadente, no desespero de reconquistar audiência, põe em cena a própria mãe, cancerosa em estágio terminal, e a pobre velhinha morre em cena).

Mas a sua saúde era precária, e ele nada fazia para preservá-la.  Fumava, tinha úlceras, era extravagante.  Chegou a fazer uma peça ironizando a própria internação hospitalar.  Um câncer de pulmão o levou antes dos quarenta anos, e o país perdeu um de seus maiores teatrólogos de todos os tempos. Não tive o privilégio, ou a dor, de estar com ele, em seus últimos momentos.

A Paraíba deu o seu nome a um dos melhores teatros de João Pessoa, mas tudo terá sido pouco como homenagem a essa grande figura das artes cênicas brasileiras que, para minha honra, foi meu amigo, quase irmão.