Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu
Fernando Pessoa
Do perigo, na verdade, tive poucas experiências. Mas quanto a espelhar o céu, sou testemunha constante, e não conheço expressão mais precisa. Se o céu está encoberto por nuvens, o mar se apresenta cinzento, com reflexos prateados. Se as nuvens se dissipam, o azul, lá do alto, vai sendo reproduzido no verde-azul das águas, cá embaixo.
Em momentos como os que ora vivemos, de inquietude, perplexidade, insegurança, sombrias perspectivas, não há melhor consolo do que a sua contemplação e o seu desfrute, também por outros sentidos: o cheiro capitoso dos seus sargaços, o som repousante das suas ondas, a tepidez nordestina das suas águas, até mesmo o seu gosto salgado nos lábios de uma namorada. Agora, que vivo todo o tempo perto dele, posso me considerar um privilegiado.
O meu oceano particular, no entanto, não tem a dimensão do “pélago profundo” de que fala o poeta Castro Alves. Embora eu já tenha singrado águas mais remotas, limita-se ele, realmente, a pouco mais do que aquilo que vejo do meu terraço: uma linha de arrecifes, a pouco mais de um quilômetro da costa, separando, com um bordado de espumas, o “mar de dentro” e o “mar de fora”, um farol branco, do tempo do Império, na extrema esquerda, a imponente silhueta do Cabo Branco à direita. O que se me oferece, portanto, é quase um grande lago calmo, amistoso e seguro: os tubarões ficam além da linha dos corais.
Seus segredos e humores, aprendi com minha própria experiência, e com longas conversas com jangadeiros. O fluxo das marés, entre preamar e baixa-mar, é de pouco mais de seis horas (na natureza nada tem precisão matemática). Assim, se em dia de lua cheia a maré está seca por volta de 10,30 horas, no dia seguinte voltará à mesma situação por volta de 11,15, após quatro movimentos. O mesmo se dá com a lua nova. Nas marés equinociais (março e setembro), a variação é mais forte, sem mudança de cronologia. E os mesmos ciclos se observam ao longo dos quartos crescente e minguante: são as “marés de lua” e “de quarto”. Por fim, há também como saber o “ponto” da maré pelo movimento lunar: ao nascer a lua, temos um quarto de vazante (isto é, pouco mais de hora e meia), o mesmo valendo para quando ela se põe.
Mas não posso deixar de falar das brisas marinhas, que figuram como uma espécie de transpiração do gigante. Elas nos trazem o seu murmúrio e o seu cheiro. Os ventos de sul-sudeste são os mais fortes, e podem vir com chuvas. Os do leste-nordeste, só muito raramente. Quando a maré enche, o vento tende a aumentar, quando vaza, a diminuir. E nas manhãs de calmaria sopra, quase imperceptivelmente, o terral. Em função deles, o mar nos oferece prazeres diversificados. O “vento largo” (do leste) é o melhor para os velejadores esportivos, que podem navegar costeando, nos dois sentidos. Os outros ajudam os poucos veleiros de pesca que ainda restam a adentrar o oceano provedor. As calmarias são o deleite dos nadadores e dos pescadores de caniço.
Para os banhistas que realmente gostam do mar, valem sobretudo os ventos brandos. Pode-se nadar, mergulhar, boiar, misturar-se com ele, em verdadeiro conúbio, “curtindo” aquele “abraçar completo dos líquidos” de que fala o poeta João Cabral de Melo Neto. No meu caso pessoal, a senectude me trouxe uma grata surpresa. Posso boiar, em decúbito dorsal, sem qualquer movimento, até quase adormecer, o que não me acontecia, quando jovem: as pernas afundavam, e eu tinha de recorrer a movimentos das mãos, para estabilizar o corpo. A razão disso? Menos músculos, ossos menos densos? Não me preocupo em saber.
Afinal, quando chegar para mim “a indesejada das gentes”, a hora de “devolver o corpo à Natureza”, vai ser através do mar que, provavelmente, voltarei à “pátria da homogeneidade”. E já que recorri a Bandeira, Voltaire e Augusto dos Anjos, invoco também Fernando Pessoa, poeta maior, para afirmar que “não tenho preferência para quando já não puder ter preferências”. Mas meus filhos, por certo, preferirão ver-me diluído em cinzas nas águas que assim já abrigam minha irmã mais velha e meu irmão caçula. Foi nelas, como afirmam os cientistas, que a vida começou. E se a insensatez humana, ou a loteria cósmica, em mais algum novo processo de “destruição em massa”, extinguir-nos a todos, o mar ainda sobreviverá, para algum dia, talvez, dar início a um novo ciclo de vida na terra.
Meu tio amado! Como é prazeroso te ouvir… desejo um dia tb me unir a essas cinzas, nesse mesmo mar.
Tio Clemente, nessa época tão triste, mais uma vez você me faz chorar! Chorar por que amo o mar, chorar por que não posso estar aí em Praia Formosa, chorar de saudades do meu pai, cujas cinzas encontram-se aí, como você mesmo mencionou. Que bom ter um tio tão sensível quanto você! Obrigada pelo lindo e emocionante texto! Que tudo isso passe logo e eu possa novamente desfrutar desse mar maravilhoso junto com você.
Um beijo carinhoso, da sua sobrinha, Sandra Rosas.
Mais uma vez: maravilhoso!!! Emocionante!!! O mar não poderia ter melhor descrição. Obrigada, Pai!!!!
Caro Clemente,
é justo vc se “considerar um privilegiado”, morando junto ao inspirador e “grande amigo”.
Abraço, Sérgio A.
Obrigado sobrinha, obrigado amigo Sérgio Alves!
Sandrinha, fique tranquila, que o nosso amigo estará à nossa espera. Nessa vida tudo passa, diz a canção popular. Como também Santa Teresa de Ávila: “Omnia transeunt”. No próximo verão, no máximo, estaremos todos juntos, abraçados por ele.
Clemente, que tudo sabe do mar e da poesia da vida, em mais um belo texto.
Caro Celso:
O mar, que hoje quase bate à minha porta, não tem o dom de nos separar.
Continuamos próximos, você em Portugal, eu de volta à nossa pátria paraibana, onde, há bem mais de meio século, servimos à poesia. Reverencio a sua fidelidade a ela.
Grande abraço.
Estou defronte da Praia Formosa, do outro lado do mar Atlântico, amigo. Se você apurasse bem a vista, poderia até me ver erguendo uma taça de vinho em homenagem à nossa velha amizade.
Belo texto, Clemente, à semelhança dessa paisagem marinha aí defronte de tua varanda
Caro amigo,
o mar apresenta os perigos, como você bem sabe, àqueles que não o respeita. Eis a razão da tua inexperiência!
A Praia Formosa tem um ilustre morador, digno e merecedor de toda beleza que esta praia tem a oferecer, por onde tivemos o privilégio de velejar.
Aguardo ansioso singrar novamente essas águas contigo, em nosso querido Zagaia, quando cobrarei mais um belo texto.
Abraços
Vamos lá, velho marinheiro!
Como já repeti, quem é do mar não enjoa!
Grato pelo comentário.
Clemente
Clemente, que delícia, quase senti a brisa do mar, tamanha riqueza de detalhes.Depois de uma trilha com vc e de tê-lo lido em sua juventude poética, agora, com suas crônicas, amplia a nossa superfície de contato. Desse atrito exala admiração. Beijos