As pessoas em Paris passaram a dormir pensando no dia 11 de maio. Quando chegar essa segunda-feira, todos nós que estivemos fechados em nossas casas, teremos de volta, em tese, o direito sagrado de ir e vir à hora que quisermos, para onde quisermos. Obrigados desde o 16 de março último a preencher uma certa “Attestation de Déplacement Dérogatoire” para ir à rua, as regras do confinamento, embora longe de draconianas, preveem saídas estritamente ligadas a atividades essenciais, e distantes apenas um quilômetro de raio do domicílio. Com o relaxamento, a retomada da vida um pouco como era antes dá justa medida da euforia que nos invade. Quando penso que vou poder caminhar até o Palais Royal e ler o jornal num banco de praça, não há como ocultar um frêmito de emoção. Isso, bem entendido, se os equipamentos públicos, a começar pelos próprios bancos, não estiverem tarjados para que as pessoas não os ocupem. Afinal, se o relaxamento se tornará inexorável até lá, vale dizer que bares, restaurantes e cafés permanecerão fechados, por forte que seja o lobby do setor para que haja a liberação – ainda que fortemente regulada. Mas por enquanto, não se antevê qualquer facilidade aos 160 mil estabelecimentos ditos de convivialidade do país – o que dá ampla ideia da fenomenal tragédia que se vislumbra.
Alforriados a sair de casa ou não, certo mesmo é que vem pela frente uma campanha gigantesca de sensibilização quanto aos riscos que vão pairar no ar. O maior deles, desde já, é que os dividendos do confinamento se esvaiam por completo por ocasião da rentrée de setembro, na entrada do outono, quando as condições atmosféricas dariam ao coronavírus seu habitat ideal, de bom a melhor até a chegada das festas natalinas. Mas antes disso, há o desafio do verão. Duas são as regiões onde o vírus mais circulou: o Grand Est – onde estão a Alsácia-Lorena – que, nesse capítulo funesto, foi o equivalente francês ao que foi a Lombardia na Itália; e Île-de-France, que compreende a capital. Ora, o que não pensar do deslocamento de populações dessas regiões em direção às zonas pouco impactadas pelo coronavírus, levando em conta que muitas delas registraram poucas baixas, e são destinos de praia e montanha que pontuarão alto na redescoberta do turismo interno pelos franceses? Quem garante que o desconfinamento não insuflará uma sensação geral de liberação, e, consequentemente, de afrouxamento de cuidados que possam voltar a lotar as UTIs e as emergências? De resto, quem é mesmo esse vírus intrigante, que morre com água quente e sabão, mas que resiste a bilhões em investimento para enquadrá-lo?
De absolutamente certo mesmo, só a incerteza. Incertezas sobre como multidões se comportarão quando liberadas em vagões de metrô. Sobre que zonas serão desconfinadas por último para efeitos de deslocamentos dentro do país. Em que medida os grupos de risco se guiarão pelo instinto de sobrevivência e evitarão situações de contágio potencial ou se, pelo contrário, se for para viver a vida sob o signo das restrições extremadas, que sentido terá viver? Do lado da economia, o desastre é absoluto. Um mês de confinamento derruba o PIB francês em estimados 3%, sendo que o triplo disso já foi registrado até agora. Fortunas vão se evaporar, e será a imensa a erosão dos ativos. Tudo isso acontecerá num cenário de contornos recessivos, com forte contração de oferta em setores críticos e, consequentemente, com alguma pressão inflacionária por conta da procura sôfrega por bens que resultam atrativos, depois da formação de uma poupança forçada que chega a alguns bilhões de euros nesses últimos 45 dias. Há, por outro lado, imensa expectativa com respeito ao papel do Estado e, culturalmente, o francês tende a querer que ele lhe dê até apetrechos de 2 euros que podem lhes salvar as vidas, como é o caso das máscaras. Comprá-las com dinheiro do próprio bolso parece-lhes descabido.
Mas tudo isso pode perfeitamente ficar em segundo plano quando nos abstraímos da conjuntura e nos remetemos à moldura comportamental do mundo PC, ou Pós-Corona. Semana passada dei minha primeira aula em “Zoom” para os alunos da pós-graduação da ESPM. Para mim, foi experiência inédita. Não posso mais me permitir ignorar aplicativos como faço, e não dará mais para ter um celular de cujas funções não uso nem 10%. Algumas sinergias devem ir para o lixo em tal cenário. O mundo sem contato físico me faz pensar seriamente se vale a pena lutar, ganhar dinheiro, dar certo, ter sucesso. Doravante, os ambientes de escritório vão ser suprimidos aceleradamente. Isso será bom ou ruim para as estruturas de coworking? A possibilidade de que esse universo viral continue a nos acossar pelos próximos anos prevê uma espécie de vigilância sanitária permanente, fato atestado pelo lacramento de um bairro de Pequim com 4 milhões de almas, por causa da detecção de um único caso de coronavírus, com rastreamento ulterior de todos os passos do pobre homem. E que futuro têm as viagens? Acaso teremos daqui em diante globe-trotters com rodagem em dezenas de países? Talvez bem menos. De bom mesmo, essa sensação de 15 anos: cabelos grandes, gasolina barata, sem dinheiro no bolso e proibidos de sair de casa.
*
Seja como for, poucos fenômenos podem ser tão cruelmente traiçoeiros quanto uma primavera em Paris. É o que concluo nesta sexta-feira, 24 de abril, a minutos de mandar o texto para a redação. Como acautelar-se e prevenir-se, dando à peste a devida importância, quando tudo lá fora conspira para a felicidade? Não é assim o canto da sereia que embala o marujo, fazendo com que ele se atire no mar revolto para afagá-la e ouvi-la mais de perto, até ser engolfado pela água salgada? Ao abrir a janela, o que vi? Um céu de azul prístino que poderia cegar a retina mais sensível. Um ar perfumado que vem das margens do Sena, que poucas vezes teve tons tão arrebatadores de verde e azul no último século. No ar, gralhas e corvos dão seus rasantes, mas algo na atitude deles trai uma serenidade nova, como se ser os donos dos céus de Paris fosse, a essa altura, um fait accompli, e que as coisas assim ficarão para sempre. Coitados, logo verão que a vida é feita de reveses até para as almas mais puras – a exemplo do que pode suceder aos humanos. O que fazer num dia assim? Calçar as luvas, levantar a máscara e ir ao encontro do sol, de que vejo uma faixa generosa no parque fechado. É possível, tudo é possível numa primavera parisiense. Inclusive uma tosse repentina que a torne num átimo tão inverossímil quanto um assalto à porta de casa.
Belas reflexões. Levam-nos a pensar, prevenir, programar, mas sem amargura.
Vamos encarar o porvir sem medo e sem mágoas.