Fernando Dourado

Paris, após confinamento.

Desde a segunda-feira última, a França está desconfinada. Se muitas e nebulosas são as normas que regem o deslocamento interdepartamental, e já nem falo do internacional, certo é que mesmo numa zona onde o vírus voeja à solta, como na parisiense, já podemos nos deslocar num raio de cem quilômetros de casa, à hora que quisermos, e sem ter que carregar o famigerado atestado no bolso, junto com os documentos. Isso já é o bastante para uma parte de mim. Tenho imensa dificuldade em lidar com esse tipo de formalidade. Excetuados os controles de fronteira aeroportuárias que remanesciam na ordem antiga, a que me adaptava com resignação por entender que um pouco de ordem conta em favor de todos, não consigo reconhecer num ser humano o direito de pedir ao outro que se identifique. Quem é ele para tanto? Quem o investe daqueles poderes, e com que prerrogativas o faz? Nesse ponto, sou inglês.

Inglês, por certo, mas há um momento em que a complexidade e as contradições da cultura latina me pegam de jeito. Veja-se o gerenciamento dessa imensa crise sanitária, a partir do que observo daquele que vem sendo meu endereço há dois meses, e que contrasta muito com o padrão que impera no Brasil. Ora, se há uma catástrofe de fôlego, o que se faz? Constitui-se um Conselho Científico pluridisciplinar; criam-se uma profusão de planos de contingência voltados para o restabelecimento das normas de vida que entrarão em vigor em 8 semanas; ajudam-se os mais necessitados e mobilizam-se as forças de terra, mar e ar para priorizarem o combate à pandemia. Que tudo seja alinhado e pensado de forma lógica, clara e inequívoca. Que os cenários sejam plotados e atualizados em tempo real e que as ações de comunicação deem conta do estado da arte dos trabalhos com as palavras certas e clínicas. Nesse ponto, sou francês.

Francês, malgré moi même. Isso porque poucas sociedades se prestam tanto a sobreviver a esse tipo de crise quanto as culturas reativas do Oriente. Naturalmente obedientes, quando a salvo do caos e da anarquia – o que não costuma ser a regra de sua história. Coletivistas e homogêneos, respeitam os chamados comandos supremos e prescindem de grandes contingentes policiais à solta porque têm células de comando que vão do edifício à rua, da rua ao bairro, do bairro ao distrito, do distrito à cidade, da cidade ao departamento, e do departamento ao poder supremo de sanção. Funciona. Há, pois toda uma cadeia que zela pela consciência coletiva, e que inibe a contravenção à norma. Uma bênção nessas horas, embora as pessoas possam ser abúlicas quando se trata de contarmos com sua iniciativa individual, a criatividade e o pensamento disruptivo. Seja como for, no caso de uma pandemia, preferia ser chinês. E em terremotos, japonês.

Nem japonês nem chinês. Olhando em retrospectiva, hoje percebo que a ficha custou a cair aqui na França. Mais tempo ainda na Inglaterra, é bem verdade. Paris poderia ter despertado para o que estava em jogo uns dez dias antes de Macron decretar o confinamento, naquele solene 16 de março. Assim fazendo, teria reduzido as ocorrências em uma terça parte, e talvez não tivéssemos tido o pico trágico da primeira semana de abril quando, ainda assim, o sistema aguentou o solavanco. Na primeira quinzena de janeiro, quando as imagens de Wuhan começaram a aparecer, teria sido tão fácil dar voz e vez aos que alertaram para o perigo iminente. Se os chineses castigaram seu médico-herói, cuja morte enodoou um país que não costuma colecionar galardões em direitos humanos, a Alemanha ouviu a voz do virólogo Christian Dorsten. Ao fazê-lo, testou a população, cortou o mal pela raiz e ainda pode acolher pacientes dos vizinhos. Nessa abordagem, não há dúvida, sou alemão.

Alemão, que nada. Mais difícil é me definir quando vejo à distância o Brasil. Finoriamente – leiam bem, farsescamente – esse capitão apocalíptico, esse desprezível ente mineralizado, agora quer lavar as mãos, mesmo que com sangue – como já disse alguém dia desses -, para eximir-se da crise econômica inevitável, e para jogar em terceiros a culpa pelos péssimos números da catástrofe sanitária. Eles ameaçam nos catapultar, sem favor, a uma triste vice-liderança mundial. Tendo engendrado o pior dos mundos, e esposado tanto uma política quanto uma narrativa que desmoraliza o que a direita teria de mais meritório – a gestão -, o capitão mostrou seu descalabro e seu despreparo numa hora aziaga. E o que temos? O general vice-presidente lançando balão de ensaio numa das páginas mais nevrálgicas da imprensa, em que diz, à sua maneira: se precisarem de mim, estou aqui. Na verdade, ninguém derramará uma lágrima pelo capitão. Nessa quadra, sou mesmo brasileiro.