Interior do Restaurante Chez Omar – Paris.

Quando criança, lembro que minha mãe comprava espiral Sentinela para afugentar insetos. Era uma serpentina dura, verde, concêntrica, que, por um milagre que me escapava à compreensão, ia queimando devagarinho, depois de acesa na ponta de fora. Da cama, pronto para dormir, eu olhava com admiração aquela maravilha do engenho humano. Geralmente cabia a mim a primazia de acendê-la e, à medida que queimava, a brasa se deslocava para dentro. Até chegar lá, eu já tinha adormecido há muito tempo. A fumaça que soltava era garantia de bom sono e tinha um perfume de incenso. Não sendo tóxica para os humanos, era letal para os bichinhos. Assim podíamos dormir imunes ao barulho azucrinante das muriçocas no ouvido que, traiçoeiras, costumavam atacar mal apagavam as luzes. Em Garanhuns, uma delas levara um amigo da família ao desespero. Sem habilidade para esmagá-la contra a parede branca, ele resolveu matá-la da maneira que lhe pareceu mais infalível. Mirou e disparou-lhe um tiro de calibre 38 que acordou a vizinhança, lhe valeu uma visita da polícia e deixou um buraco colossal no reboco branco. Não havia visita que não fosse convidada para ver o misto de bravura e desespero daquele homem de paz que fora provocado em seus domínios, com a cabeça no travesseiro. Com espiral Sentinela, como dizia a propaganda na televisão, os bons sonhos estavam garantidos. Até meus doze anos, ela rivalizava com a escada rolante e o avião na lista das grandes invenções da humanidade. Mais tarde, trabalhando em sala de aula modelos de negociação intercultural com meus alunos, eu reproduzia na lousa o desenho instigante quando me referia aos latinos e árabes que gostavam de abrir as reuniões falando de amenidades, para só depois atacar o ponto central da questão. Eram como a brasa, que ia de fora para dentro. Era como se perante minhas audiências multiculturais, eu buscasse um pretexto para falar desse milagre de minha infância. As I child my mother used to buy a miraculous device in order to fight insects. If you let me draw here what it was like you will grasp my sensitive point in seconds...E então a desenhava. Com os recursos da informática recentes, passei a projetá-la em tela cheia, dando o valor merecido a uma das love brands daqueles anos.

*

Lembrei disso ontem, bem à hora do almoço, por um motivo muito mais prosaico e acidental. Duas senhoras estavam sentadas a meu lado no restaurante Chez Omar, onde tentavam vencer o cuscuz royal que eu comia galhardamente sozinho, adiando o fim à base de pequenas garfadas. Eis então que uma delas falou das férias. Viajava pelo Cantal com o marido quando um montículo lhes chamou a atenção à distância. O que seria? Um cavalo fora atropelado. Com a pata quebrada, deitado no asfalto, o desespero deles era total diante do animal que agonizava, e que eles sequer tinham como eutanasiar. “Era desesperador. Jean-Luc ainda pensou em cravar um punhal entre os olhos, mas não teve coragem. Podia ser pior. Levou tempo até que…” Não consegui acompanhar o fim do relato. Por uma razão que desconheço, e que espero não estar ligada a outras anomalias, aquela conversa me travou. Cruzei os talheres e, por uma vez na vida, não pude terminar o cuscuz com carneiro. Pela segunda vez em dias, deixava um prato de lado. Alguma coisa na cena me doeu e embrulhou. Na volta, já livre daquele enjoo brusco e desagradável, lembrei que na casa de meus pais, certas palavras e temas eram proibidos à mesa. Ai de mim e de meu irmão se disséssemos por exemplo câncer. Havia nela uma conotação que ia além da doença agressiva. Significava a decomposição de alguma parte do corpo, o que comprometia sua excelência o apetite. Nojo e lama, nem se fala. Enfim, nada que pudesse poluir os sentidos associados à culinária. Catingafedentina e mesmo mau cheiro eram proscritos. Que não se fizesse tampouco alusão a aulas de biologia ou ciências onde se dissecassem sapos ou lagartixas. Tão graves quanto esses assuntos e palavras eram as invariáveis alusões a dinheiro que meu irmão insistia em fazer. E era crucial se esse tom traísse alguma admiração pelo milionário, o que meu pai podia considerar um menoscabo às suas modestas finanças. No nosso universo, portanto, nomes como Batista da Silva e João Santos eram a garantia de cara fechada. “Essa é uma casa de gente civilizada. Dinheiro é assunto de maloqueiro, de mascate de interior. Aqui a gente fala de massa cinzenta, de cultura. Qual é a capital do Laos? Estão vendo? Aposto que João Santos sabe.” Mas se recebíamos visita e ela falasse de finanças, meu pai tinha a saída dele. “Vamos falar de dinheiro de verdade, então: Onassis, Rockefeller, Niarchos, Vanderbilt. Esses sim merecem uma missa.”

*

E a espiral Sentinela continuou queimando. A caminho de casa, o ônibus contornou o Luxemburgo, como sempre faz, e as copas das árvores começavam a amarelar. Trouxe papai comigo até essas bandas do Vème arrondissement, perto da Sorbonne e do Panthéon, por onde hoje eu mais ando, de livraria em livraria? Não lembro. Ele já não estava caminhando com muita desenvoltura e para onde ia tinha que levar uma caixinha de isopor onde conservava insulina no gelo. Lembro sim da noite de insônia que ele teve no hotel Lutetia, onde dividíamos o quarto. Quando lhe falei que o hotel recebera em 1940 os oficiais alemães e colaboracionsitas de Vichy, ele ficou pensativo. “Não está com sono?” A voz dele veio límpida. “Como é que posso, meu filho? Você já imaginou o que essas paredes não viram? O que teve de francesa que veio aqui prestar as homenagens ao oficialato alemão. Não conhece a história da francesa que dizia que o coração dela era gaulês, mas que a xoxota era internacional?” Estava difícil. “Com esses pensamentos, o senhor vai ter mesmo dificuldade para dormir. Pense que foi aqui nesse mesmo hotel que De Gaulle alojou os que escaparam dos campos de concentração.” Aí logo o ouvi roncar. A tristeza o anestesiava. Não é de hoje que lamento não ter largado todos os meus afazeres daqueles dias para tê-lo levado a um entretenimento de mais qualidade, mais propício a quem só viria à cidade duas vezes na vida, ambas comigo. Lembro bem da marcha heroica que ele fez de bengala e tudo do Arco do Triunfo até a Opéra, onde afinal nos sentamos no Café de la Paix. Era um chão bem razoável, ele era apenas uns cinco anos mais velho do que sou hoje e aguentou a marcha heroicamente. Não sei se hoje eu conseguiria fazer o mesmo trajeto sem sentir dores desesperadoras na lombar, e sem ter que recorrer a um Tramal. Ainda bem que ele não está vivo para me ver. Ficaria seriamente inconformado com meu corpo e diria que a culpa toda fora de meu primeiro casamento, ao casar com uma mulher que, apesar de esguia, vinha de uma família de sertanejos gordos – como ele já dizia naquela época. “O melhorzinho era o governador. O teu sogro era de longe o pior. Nunca pensei que bode guisado engordasse. No meu tempo, sertanejo era magro. Cuidado com sua bitola. Barriga grande esconde o pinto. Um homem que não goza está perdido. E cuidado para não ficar diabético. Não há doença mais traiçoeira.”

*

Paris teve hoje a primeira manhã fria desde junho. Uma dádiva, sob certos aspectos. Quase a postos para sair, recebi de um amigo uma provocação: “escreve sobre o vibrador de Angélica” Ôxe. Vi no noticiário as loas a este aliado do casal. Imaginei a cena. “Escolha você hoje, amor.” E já vejo Huck remexer na gaveta onde vibradores de todas as cores e tamanhos descansam como um exército de combate, sobre camadas de algodão. “Pensei no black dream, mas a bateria dele está fraca e não quero trocar a pilha, já tirei a lente. Vamos de pink punk?” Ela faz muxoxo. “Eu sabia, você tá ficando é meio viciado nele. Tudo bem. Mas eu começo.” E aí, aos sons peculiares desse momento de enlevo, se somará o zunido do amiguinho do casal. Respondi ao amigo. “É um tema fraco para um artigo. O que diria? Que é uma atitude típica de quem cresceu na TV? Lembro dela menina de tudo lá na Manchete. Foi a maior aposta de Adolfo Bloch. De Luciano, eu frequentava o bar, numa travessa da 9 de julho. Foi Bob Coutinho quem nos apresentou. Esse exibicionismo é próprio de quem cresceu olhando para a câmara.” E por aí ficamos. Mas depois estive pensando. Na corrida presidencial passada, foi a filha de Paulo Guedes quem detectou o imenso potencial eleitoral que teria Huck. Ele ficou balançado, mas achou que precisava reforçar a poupança porque não ia dar para sustentar a família com o salário de Presidente da República. A família Marinho também teria dito: se for e não ganhar, você não volta. Mais adiante, ele disse em favor da desistência que não queria deixar de jogar tênis com o filho. Agora quando se alinham os eventuais candidatos para a próxima presidencial, lá volta o casal para o centro da ribalta. Dessa vez para alardear as virtudes de um bisonho vibrador, quando eu achava que o lendário nariz de Huck fosse multiuso. Não vou avançar palpites. Mas tenho quase certeza de que ao se colocar assim diante de milhões de eleitores potenciais do marido, Angélica dá o primeiro passo para sabotar a candidatura. Ela sabe o quão o grotão brasileiro, que é o que conta eleitoralmente – mesmo que seus nativos votem em cidades grandes -, não vê graça nesse tipo de manifestação. Ela sabia que não estava comendo sushi com as amigas no Leblon. Longa vida ao prazer do casal com a infantaria de apoio, que achei engraçada. Mas já vi que a família Huck não vibra em uníssono com a  candidatura.

*

Não me recuperei ainda do susto que levei no sábado último. Às oito da noite da França, 3 da tarde no Recife, meu irmão me escreveu: “Estamos de saída para o hospital. Mamãe pediu. Está indisposta. Darei notícias.” Uma hora depois, nada. Era sério. Será que estava cuidado da internação? Minutos depois, afinal, vem a mensagem dele. Tinha uma só palavra. “Descansou”. Senti o sangue sumir do rosto. Tomei um longo gole de vinho, respirei fundo e cruzei os talheres. Outra mensagem. “Disse que a princípio não iria agora não”. Ou seja, pensei, lutou como uma valente até os limites das forças, mas não resistiu. Isso era bem dela. Pedi mais uma garrafa de vinho para organizar as ideias. A mensagem seguinte foi sábia. “Mas está melhor agora”. Ou seja, conformado com o destino, e tendo ela sofrido tanto (eu nem imaginava), mamãe chegara ao paraíso. Enfim, ele estava usando um desses artifícios retóricos do tipo Deus só leva os bons e já não está sofrendo como a gente aqui. Era incrível a capacidade dele de processar com tanta rapidez uma tragédia dessa. Imaginei-os no carro, a caminho do hospital, e, de repente, o fim. Peguei um comprimido de Lexotan. Escrevi. “Mamãe morreu? Seja claro”. Cruza com a mensagem dele. “Já está vendo televisão.” Ora, a dor do momento já o estava levando a projetar a primeira coisa que ela fez ao chegar aos céus. “Se você quer me enlouquecer, conseguiu. Fale com clareza, PQP. Sem metáfora. Morreu ou não, cacete?” Ele: “Não, nem chegamos a ir ao hospital. Ela deu uma descansada aqui e melhorou. Deixe de ser histérico.” A essa altura, eu já tinha tomado três copos do vinho novo. A cor foi voltando ao rosto, pelo que soube. “Quero uma prova de vida.” Ela falou: “oi meu filho.” Eu nem sabia o que dizer. “Oi mamãe. A senhora vai bem?” “Estou bem sim. Até me senti meio indisposta, mas dei um cochilo e passou.” Então como ela estava muito bem, contei a história. “A senhora nasceu de novo, viu? Fiquei arrasado, tínhamos tanto a conversar. Num país onde todo mundo usa gerúndio sem necessidade, hoje ele fez falta, não foi? Bastava dizer: está descansando. Ou foi dar um cochilo. Mas descansou…Bem-vinda de volta.” Ele explicou por escrito que o “disse que a princípio não iria agora não” se referia a que ela tinha desistido do hospital. E não de morrer. Se fosse telégrafo, já teria estourado a Terceira Guerra.

*

Tenho compromissos editoriais em Portugal, mas não ouso sair da França.  É verdade que se lá estiver e se vetarem meu regresso a Paris, eu já estaria a meio caminho de casa. E os riscos que correria lá, corro-os aqui onde a situação começa a apertar de novo, com fechamento obrigatório de bares e restaurantes depois das dez da noite, enfim, num ensaio de retorno à situação mais crítica do confinamento. O déjà vu é terrível. Para um prisioneiro de qualquer espécie, deve ser um pesadelo voltar para a cadeia. Nesse contexto, Portugal poderia ser até bem mais divertido porque lá tenho bons amigos e Lisboa não deixa de ser uma extensão da Zona Norte do Recife. Mas é nesse ponto que mora o perigo. Por impulso, posso querer voltar para o Brasil por Pernambuco, e seria mais fácil baixar a guarda, negligenciar as precauções que me eduquei a respeitar aqui. Se chegasse ao Recife, era provável que meu novo livro ficasse em segundo plano, senão terceiro, e seria fatalmente engolfado pelas coisas práticas da vida que são um martírio. Melhor ir ficando até onde der. A espiral Sentinela costumava acabar pouco depois da meia-noite, pelos cálculos de mamãe. “Depois o quarto fica impregnado desse cheirinho e enquanto a gente não abrir a janela, as muriçocas não têm vez.” Mesmo assim estão os ares de Paris para mim. É como se contivessem os anticorpos para ajudar a manter o coronavírus sob controle, a despeito dos sinais de alarme. Lamento todo dia quando passo diante de Notre Dame não ter vindo com mamãe a Paris. Acho até que com as irmãs, ela estava mesmo em melhor companhia. Mas não posso esquecer o dia que ela disse que ali passou maior frio que já sentiu na vida, pior do que muito inverno de Garanhuns. Todo dia sinto uma vontade de abraçá-la quando penso nisso, de aquecê-la com o calor de meu tamanho e infindáveis calorias. Especialmente agora que sei que ela não descansou, verbo que me traz uma espécie de memória de trauma. Tanto é que eliminei do cardápio o que estava comendo e bebendo naquela noite: coquilles Saint Jacques, ou vieiras, e vinho Sauvignon. A semana que termina amanhã não foi das mais fáceis. Construí uma vida cheia de renúncias às pequenas coisas para que não faltasse tempo para fazer as que considerava grandes. Quando me sinto pesaroso quanto às primeiras e infértil nas segundas, nem Paris dá jeito. Talvez só a Sentinela.