Woody Allen.

 

O título original da autobiografia de Woody Allen é “A propósito de nada”, um rótulo que bem combina com seu autor, ambivalente e irônico. Mas a edição brasileira se intitula singelamente “Woody Allen, a autobiografia”. Imagino que os editores verde-amarelos viram, não sem razão, no título em inglês, um provável prejuízo comercial, pois é certo que o leitor brasileiro nele veria um nome sem apelo. Pior, um nome metafísico, com o livro indo parar na esquecida e desprezada estante de Filosofia. Apesar do nome famoso do autor, o livro ficaria resignado ao pó e à indiferença.  Sim, isso pode parecer duro aos amantes da sabedoria, mas editoras também querem vender, e não apresentar o nada num volume bem impresso.

Qualquer leitor vence, com satisfação e celeridade, as trezentas páginas de “Woody Allen, a autobiografia”. O estilo ajuda, porque é rápido, com frases curtas, coloquiais, vibrantes, refletindo o típico e lúdico “nervosismo” do autor. Antes de nos divertir com suas piadas e chistes, Allen diverte-se a si mesmo. Atrás do biombo do “nada”, ele se despe até não ficar exatamente nu, mas sempre graciosamente vestido para um próximo número e uma nova cena.

Como sempre se pinta a si mesmo, Allen é Allen desde a infância: “nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um misantropo, claustrofóbico, isolado, amargurado, um pessimista impecável”. Depois dos cinco anos de idade, registra ele, “[…] mudei para um moleque feio, azedo, chato e de ovo virado”. A graça e a habilidade em fazer piadas viria logo depois. Antes, apaixonou-se pela mágica: “Tentei ser um mágico, mas descobri que só podia manipular cartas e moedas, não o universo”. Aí está uma piada que antecipa todo o Woddy Allen que conhecemos e que nos lembra Guimarães Rosa em frase que poderia ser uma divisa do autobiografado: “Salvem-se cócega e mágica para se poder reler a vida”.

A “cócega” trará o riso, o trabalho, o emprego, o surgir do comediante e do redator de piadas. Essa é a mágica do jovem e talentoso nova-iorquino que vencerá a pobreza. Da timidez inicial à autoconfiança, eis um percurso que não despreza a sua velha autodepreciação, da qual, ao longo da vida, haverá de tirar proveito de forma inteligente e humorística. Vieram, então, os discos de humor, os shows na TV, os palcos e finalmente os filmes e livros. Não obstante os êxitos que se sucedem, Allen não deixa de se ver como um tímido e um desajeitado. Todo o seu ilusionismo verbal será a fonte da “mágica” de seus filmes da maturidade; será com esse truque existencial que disfarçará à exaustão o seu desajuste à realidade.

Ao longo do livro chega a ser comovente o esforço de Allen para equacionar a consciência do próprio talento à relativização do que este talento vale. Daí a autodepreciação assumir um valor não só humorístico como estratégico. Mas Woody Allen é um fingidor. Em alguns momentos, porém, não poderia ser mais claro, apesar da piada: “O divertido de fazer um filme é fazer o filme, a parte criativa. Os louvores não significam patavina. Mesmo com os maiores elogios, você ainda tem artrite e herpes”. Não precisamos ser leitores atentos para perceber que Woody Allen, como artista visceral e irremediável, orienta-se pela sabedoria bíblica de que o homem deve se alegrar com a própria obra. Por isso, aos jovens cineastas, revela que lhes costuma dizer quando pedem conselhos: “Mantenha o seu nariz baixo. Não levante a crista. Trabalhe. Curta o trabalho. Se não curtir, mude de ocupação. Não seja motivado por fontes externas”.

Naturalmente, como é óbvio, a trama de uma vida é formada por aquelas pessoas que nos formam, que nos fazem avançar em certas direções. Numa autobiografia, é hora de lhes dar luz, palco e gratidão. Assim, uma profusão de nomes e de artistas são evocados pela objetiva do autor: diretores, atrizes, atores, técnicos, produtores, celebridades de todos os quilates e latitudes, sem falar nas mulheres por quem se apaixonou e que dariam um capítulo à parte caso não fossem permanentemente lembradas ao longo do livro. Uma delas, a atriz Mia Farrow, terminou, como se sabe, por fazê-lo um vilão melodramático, acusando-o de molestador da própria filha e da enteada, Soon-Yi, com quem o cineasta viria a casar. Acusação que lhe custou, escusado dizer, uma terrível mancha em sua reputação. As investigações e os juízes o inocentaram, como ele faz questão de repetir, mas o estrago já estava feito… Enfim, conforme ele próprio diz melancolicamente: “Eu me encontro com problemas no último ato”.

É com essa melancolia irônica de quem sabe que vive do aplauso que Allen fecha seu livro: “Melhor do que viver nos corações e nas mentes do público é viver no meu apartamento”. Mas, a despeito dessa postura defensiva, é certo que também viverá conosco por muito tempo a nos confortar com sua obra e com seu personagem mais inesquecível: ele mesmo.