A Leyla do título não é outra senão Leyla Perrone-Moisés, a grande crítica literária, Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e uma das mais sólidas pontes entre as culturas da França e do Brasil. Ninguém mais do que ela tão viva na memória de inúmeros discípulos e leitores espalhados pelo País.
E o baú, por assim dizer, é seu recente livro “Vivos na memória”. Um livro diferente na sua produção intelectual, como se a experiente estudiosa estreasse noutro gênero. O título, por si só, tem um apelo proustiano, pois, como nos ensinou o autor de “Em busca do tempo perdido”, é apenas na memória de outrem que se permanece vivo, e, ainda assim, como se cada um de nós fôssemos apenas “pranchas fotográficas”, instantâneos de um momento.
“Vivos na memória” é belo, leve, bem escrito e bem-humorado, como se traduzisse os próprios instantes felizes que o geraram. Mas é com discrição e modéstia que Leyla esclarece na Introdução: “Eu não tenho nada de especial para contar a meu respeito, mas tenho muito a contar sobre pessoas que conheci. Uma das bênçãos de minha vida foi ter convivido com pessoas notáveis”. Bênçãos à parte, penso que ela se equivoca ao apolineamente pensar assim, pois essa convivência já a torna especial; e seu livro em nossas mãos, especialíssima. O toque humano, este ela também logo nos revela como uma atmosfera inarredável de seu livro: “O que registrei aqui são ‘biografemas’ [o termo é de Roland Barthes], isto é, traços e gestos de pessoas lembradas não apenas como personalidades dignas de biografia, mas como indivíduos extraordinários no cotidiano”.
Dessa forma, é tendo por pano de fundo sua extensa e fecunda vida literária, na qual França, Portugal e Brasil são como que privilegiados cronótopos (já que espaço e tempo estão absolutamente imbricados), que Leyla evoca, dentre várias outras figuras, personalidades tão diversas quanto Osman Lins e Todorov, Cortázar e Eduardo Lourenço, Saramago e Benedito Nunes, seu amado Roland Barthes, de quem foi aluna e amiga, e Paulo Leminski. Evocando-as, inscreve-as, como promete, em suas humanidades, que se traduzem em gestos, em afetos, em compartilhamentos, em convergências, em momentos de tensão e de prazer, companheiros que foram de viagem da vida.
É difícil dizer qual o melhor capítulo, e quase todos eles se referem a uma única personalidade. O sobre Roland Barthes é um candidato a tal destaque. Mas são primorosos, por sua delicadeza humana e compreensão, os textos que dedica a Todorov, ao pintor Sansom Flexor, a Benedito Nunes, a Luciana Stegagno Picchio, a Albertine Sarrazin.
Dentre tantas preciosidades de uma vida profissional rica de encontros, Leyla nos revela (De caso pensado? Provavelmente.) uma carta do pernambucano Osman Lins, cujo teor, como vocês verão abaixo, parece falar, com cruel ironia, dos dias atuais… É com esse trecho que concluo, recomendando seu livro (aliás, ilustrado por diversas fotos) como quem recomenda, em tempos sombrios, um radiante dia de sol.
“Tenho de dar-lhe algumas novidades políticas. Estão matando criancinhas, por medo de que surja, entre elas, um civil. Os cartórios só estão registrando crianças militares, e os padres têm ordem para só batizar recém-nascidos com patente de cabo para cima. Vários generais, mesmo assim, foram mortos com veneno para gafanhoto […] A Arena [Aliança Renovadora Nacional, partido criado na ditadura militar para dar suporte político ao governo] agora mudou de nome, agora é Poema: Partido da Obediência ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica.”
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