De repente, o dia não amanhece do mesmo jeito, nosso prédio estremece, nossas janelas se espatifam, as pontes caem, sirenes tocam, a água se torna escassa, temos que nos esconder no subsolo, nossa amada biblioteca ficou pra trás, nossa privacidade foi enxovalhada, nossa cidade está cercada por bárbaros insondáveis, a morte assume uma fisionomia difusa e onipresente, temos que atravessar a medo um deserto para chegar a terras estranhas e tentar sobreviver. Como na alegoria de Kafka, amanhecemos como atordoados insetos. Como se não bastasse, soldados sedentos de sexo e violência estupram nossas mulheres e nossas filhas. Quem se prepara para tão terríveis desgraças?
Como qualquer outra guerra, a da Ucrânia é um inferno. Para citar o verso de Drummond, “[…] uma inflamação no ventre da primavera”. Mas, como Jacques Brel cantou: “É duro morrer na primavera”. A guerra da Ucrânia, que, para Putin, é um passeio profissional do exército russo, ou seja, é uma “operação militar especial”, não apenas mata, faz pior: faz sofrer os civis, sufoca os inocentes, zomba dos idosos, cria uma multidão de refugiados. Em poucos dias, um país inteiro desaparece sob nossos olhos.
A aleatoriedade da guerra acentua o contingencial da condição humana. É vírus sem remédio e sem vacina. E, no resto do mundo, de par com as multidões pacifistas, existem aqueles para quem os tambores da guerra excitam o coração. Sentem a alegria da destruição. Eis um filme bem conhecido que já na Primeira Guerra Mundial espantou o filósofo, matemático e pacifista Bertrand Russell. Enquanto isso, ponderam os especialistas, Putin repete Hitler e está toscamente sentado sobre o seu fascismo. Mas, para lembrar Montaigne, “Por mais alto que estejamos, sempre estaremos sentados sobre nosso próprio traseiro”. Putin está nu, e o seu traseiro e o seu fascismo se confundem…
Seu suposto nacionalismo repele o nacionalismo dos irmãos ucranianos. Um nacionalismo de Estado estaria enfrentando, no teatro de guerra, um nacionalismo que luta por autodeterminação e liberdade. O Estado russo, dizem, encarnado em Putin, vê a Ucrânia como estratégica, pois a terra ucraniana é fértil, e seu subsolo é rico. Mas, ao que parece, faltou combinar com os ucranianos as intenções imperialistas, aquelas que muitos ingenuamente já pensavam banidas do mundo.
O nacionalismo é uma dessas ideias que insistem em permanecer mesmo num mundo globalizado. Dizem que Einstein o teria comparado ao sarampo, “[…] uma doença infantil da humanidade”. Não é difícil imaginar por que tão enraizada. O nacionalismo conta com o amor filial pela terra-mãe, pelos costumes, pelas tradições, pelos ancestrais, todo um conjunto de valores simbólicos e identitários de que é difícil abrir mão. Por outro lado, é um fomentador de guerras e disputas, sendo na História, como classificou Arnold Toynbee, uma “força divisora”, em contraposição à “força unificadora da tecnologia ocidental”, forças que se mostram, segundo o grande historiador, “incompatíveis”. Achava ele (Cf. “O desafio de nosso tempo”) que, em vista da revolução tecnológica, o nacionalismo terminaria por fracassar.
Com efeito, o mundo se globalizou, mas muitos se esqueceram de combinar com os nacionalistas. Assim, ao que parece, Putin resolveu castigar a “rebelde” irmã Ucrânia. Não há dúvida de que as piores guerras são as fratricidas, e os piores conflitos são os familiares. Essa “guerra de Putin”, como está sendo chamada, tem um certo componente de vingança pessoal, é uma guerra, inclusive, descolada da grande maioria da população russa. Admiramos e compreendemos a Rússia e sua cultura, não o maquiavélico mandatário que se impõe pelo medo e pela força. Cancelar artistas e escritores russos é de um simplismo desprezível e beira o patético.
A espécie humana ainda não se convenceu de que o nacionalismo é um mal, e talvez não se convença nunca. Afinal, sempre será mais fácil e razoável se amar e odiar o que está por perto. O mestre Toynbee, com toda a sua lucidez, parece equivocado: o nacionalismo, “força divisora”, não foi nem será deixado para trás. Assim, a guerra de Putin atira no Direito Internacional e acerta em cheio o coração da ONU. Urge que as Nações Unidas desenhem um novo pacto e tentem expressar o novo mundo que emerge.
Independentemente das razões para uma enviesada justificativa da invasão da Ucrânia, o que vemos é uma guerra extremamente covarde. E essa covardia despudorada, por mais que discordemos dos nacionalismos radicais, confronta-se com uma coragem e uma resistência que só podem surgir de uma consciência aguda do próprio valor e da própria riqueza. O que temos é a devoração canibalesca e bárbara de um povo e o imperdoável destroçamento de um país e de uma cultura. Tardará muito tempo para que tanto pó e sofrimento floresçam em novas primaveras. Se houver amanhã, Putin voltará à insignificância assim como vários outros líderes atuais, que são uma espécie de subprodutos da imensa crise de representatividade política e de vulnerabilidade das democracias. Em compensação, a Ucrânia, mesmo devorada, está hoje em toda parte. Isso dá o que pensar e talvez mostre para qual direção está soprando o vento da História.
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