Ordens são ordens
A propriedade chamava-se Ângelo, ou “Anjo”, na língua dos matutos. Ficava no município de Ingá, conhecido como Ingá do Bacamarte, terra dos pistoleiros Zé de Totô e Mané Anjo. E também terra de Dona Sinhá, senhora, pela viuvez, daquele feudo.
Grande era o respeito que se tinha em toda a redondeza, onde ficava também a pequena fazenda do meu pai, por Dona Sinhá do Anjo, a mulher que administrava suas terras com mão de ferro, comandando pessoalmente os trabalhadores no eito, e dando ordens com voz de estentor. Posso imaginá-la em sua atividade de supervisora implacável, reclamando quando algum enxadeiro mais fraco parava para tomar fôlego, e encostava o cabo da enxada no peito:
– Que moleza é essa, caboco? Tá dando de mamar à enxada?
Fiz, há uns trinta anos, uma caminhada solitária pelas praias de Pernambuco e Paraíba, de Pontas de Pedra até a Praia Formosa, em Cabedelo. Para a travessia da barra do rio Goiana, recorri a um canoeiro, que descobri ser originário do Ingá. Na blandícia do vento que nos levava, ouvi dele uma história dura de se crer: que Dona Sinhá mandou capar um estuprador, que havia feito mal a uma moça-donzela dos seus domínios. E comandou a operação, após desafiar seus cabras, perguntando se tinham coragem para fazer o serviço.
Cheguei a vê-la em pessoa, já idosa, numa visita que fizemos, em família, à casa grande da fazenda. Fomos a cavalo, a partir da nossa, o mais novo de nós na garupa do meu pai, a minha mãe, péssima cavaleira, montando o velho Alazão, que, quando entendia de trotar, provocava cenas cômicas, com o desequilíbrio de sua amazona. A única lembrança que me ficou, além dos licores que bebemos nas casas da matriarca e dos filhos, e acabaram por embrulhar o estômago do meu irmão mais novo, foi da voz da velha: forte, grave, realmente estentórea.
Foi certamente nessa fase da vida que lhe ocorreu o fato aqui relembrado. Em conversa com seus compadres, surgiu o tema de um desordeiro que andava perturbando o sossego das famílias, naquelas paragens. E Dona Sinhá, inconformada, provocou:
– Mas será que não aparece um homem de vergonha, para dar uma surra nesse cabra?
Os compadres, tocados em seus brios, sentiram-se desafiados. E, alguns dias depois, voltaram, com certa preocupação, para uma conversa reservada:
– Comadre, nós fomo dar uma surra no home, o home não quis apanhar, nós matemo. O que é que se faz agora?
Situação parecida viveu o coronel Antônio Pessoa, do Umbuzeiro. Cansado de ouvir queixas de um mau elemento, “cabra de peia”, na expressão da época, perdeu a paciência e chamou um dos seus jagunços:
Traga esse sujeito aqui, na minha presença!
Ordem do coronel Antônio Pessoa não era para ser descumprida. O cabra botou o pé no mundo, para dar conta do serviço. Missão cumprida, apresentou-se:
– Coronel, o home tá aí. Só não teve jeito de vir vivo.
Na minha terra, que é também a pátria mítica de Ariano Suassuna, ordens são ordens. Ou, pelo menos, eram…
***
Estou aprendendo o que é coronelismo com os causos muito bem contados de Clemente Rosas. Só não dá mesmo pra comentar porque é um mundo por demais distante do meu. Um espanto! Só fico me perguntando o quanto disso deixou de existir ou ainda existe.
Prezado Clemente Rosas.
Acompanhador dos seus contos na Revista Será? É muito bom relembrar a época e as histórias, ou estórias, dos Coronéis. Sabemos que muitas delas, até se parecem com a verdade, que eu ou muito contar. Mas continue nos brindando com seus “Causos do Coronelato” nordestino.
Caro Nealdo Zaidan: essas histórias SÃO VERDACEIRAS. A imaginação entra apenas na concepção ou reconstituição de alguns diálogos, e na caracterização dos tipos, onde há algum subjetivismo, e o conveniente tratamento literário. Aguarde os próximos “causos”. Podem ser até mais surpreendentes.
Querida Helga: é claro que esse tempo já passou, mas alguns valores do patriarcalismo rural ainda permanecem, e não me parece de todo mal que parmaneçam. Certos padrões de comportamento do chamado “capitalismo selvagem” me parecem piores.
A sua simples referência ao meu trabalho já me alegra. Quanto a comentários, talvez os meus “artigos filosóficos” (em número de dez), já publicados nesta revista e listados no meu perfil de colaborador,despertem mais o seu aguçado muízo crítico. Quando tiver tempo e gosto, visite-os.
Corrigindo: VERDADEIRAS – PERMANEÇAM – JUÍZO
Insisto em observação já feita antes aos amigos editores da Revista Será?
Como não consigo ver o que estou escrevendo nestes comentários, não posso corrigir a digitação.
Quero retificar agora trES palavras: VERDADEIRAS – PERMANEÇAM – JUÍZO