Administrador das fazendas Manjereba e Mumbaba, da Companhia de Tecidos Paraibana, na Zona da Mata, além da sua própria, no Agreste, meu pai tinha contato frequente com animais, domésticos ou silvestres. E tinha por hábito trazer filhotes, encontrados ao acaso, para brincarmos com eles, como bichos de estimação, por algum tempo.
Como sempre achei que a familiaridade com animais é saudável para as crianças, tentei fazer o mesmo com meus filhos. Não consegui grande coisa: apenas uma cobra muçurana, que passou poucos dias conosco, um tatu peba e porquinhos da Índia, que não são nativos do Brasil. Soube, bem mais tarde, que, chamados de “cuyes”, foram domesticados no Peru, fazendo parte das pequenas criações dos camponeses andinos. Até a arte dos espanhóis conquistadores os incorporou, pois vi, em viagem àqueles pagos, um quadro da Santa Ceia, em que o prato era, surpreendentemente, um “cuy”.
O tatu peba, criado solto no quintal de casa, cavava buracos e desaparecia por dias, reaparecendo inesperadamente à noite, vermelho de barro, quando a fome apertava. A criação de porquinhos da Índia, que comem qualquer coisa e não dão nenhum trabalho, foi atacada por um gato vadio, que se postava à espreita e saltava sobre o primeiro que aparecesse na porta da casinha deles, a cada manhã. Por isso, o predador recebeu o epíteto de “miserável e covarde”, do meu filho de sete anos, em exercício escolar que causou estranheza à sua professora.
Mas os causos que merecem mesmo registro são aqueles com bichos da minha infância, pelo exótico dos protagonistas e pelo inesperado dos desfechos. Os personagens foram um bicho preguiça, um filhote de tamanduá e um jacarezinho de dois palmos, não muito maior que uma lagartixa.
A preguiça fujona
Não lembro seu tamanho, mas certamente não era das veteranas. Com aquela cara achatada, de quem está sempre sorrindo sem mostrar os dentes, e sua proverbial moleza, não nos despertou preocupação. Foi colocada num abacateiro, mais ou menos isolado no terreno de trás da nossa casa. Imaginamos que, alimentando-se de folhas, e com aquela lentidão, não teria como e por que fugir.
Doce ilusão. No dia seguinte, o abacateiro era o canto mais limpo. E a busca por cada metro quadrado da área em volta foi inútil. Até hoje não sabemos para onde foi. Mas a maior possibilidade é ter-se arrastado pelo chão, galgado, de alguma forma, o muro de trás da casa, e procurado refúgio no quintal vizinho, verdadeiro sítio, cheio de mangueiras, sapotizeiros, jambeiros e pés de fruta-pão, como eram vários quintais das casas da João Pessoa de minha infância. Ali, pode até ter vivido sua longa existência, sem sequer ser percebida.
Insetívoro sem diploma
Quando o tamanduazinho chegou às nossas mãos, não sabíamos como alimentá-lo. Era um filhote, não daquela espécie de vistosa cauda, mas do tipo mirim. Não tardaram opiniões de parentes e aderentes: leite, ovo cru (furando-se um buraquinho, por onde o bicho metia a língua), que mais? Formigas não foram mencionadas, tanto pelo óbvio, como pela dificuldade de ministrar tal refeição. Isso seria com ele mesmo.
Não deu muito certo. O bichinho vivia em constante diarreia, enfraquecendo-se. E nada de interessar-se pelas formigas, sua dieta por definição da zoologia.
Um dia, perdemos a paciência. Um velho tronco de árvore foi removido no quintal da casa de minha avó, ao lado, expondo um enorme formigueiro, daquelas espécies agressivas, boas de ferroada. Pusemos o tamanduazinho no meio, e qual não foi a nossa surpresa: o pobre animal saiu em disparada, fugindo ao ataque das criaturas que deveriam ser a sua refeição.
Até hoje não encontrei explicação para esse fato. Talvez, pela pouca idade, o título de insetívoro ainda não lhe tivesse sido concedido.
O crocodiliano feroz
Quando se sentia ameaçado, o jacarezinho abria o bocão em sinal de agressividade, mas não passava disso, e pouco se movia. Lá no fundo da garganta, víamos o véu esbranquiçado que permite aos da sua espécie abocanhar qualquer presa dentro d’água, sem engasgar-se. Era uma mascote de pouco brilho, como se vê, mas teve seu dia de protagonismo.
Viajávamos de Santa Rita, onde moramos na primeira infância, para João Pessoa. Pai e mãe na frente do carro, os três irmãos no banco de trás. Aos nossos pés, no piso do veículo, o jacarezinho. Tínhamos, os dois mais velhos, entre seis e sete anos, o caçula entre três e quatro.
De repente, com um grito, meu irmão mais velho se atira para adiante, por cima do encosto do banco dianteiro, indo cair sobre a minha mãe. Instintivamente, sem saber a causa do susto, pulei também sobre o pescoço do meu pai, que teve de parar o carro. E só então olhamos todos para trás, para entender o que se passava.
O quadro que se apresentou era de fato cenográfico: no canto do banco, de perninhas encolhidas, meu irmão caçula chorava, assustado. Diante dele, sobre o banco, postava-se o jacarezinho com ar ameaçador, de boca escancarada.
Contornada a situação, sem traumas, avaliamos como o incidente poderia ter ocorrido. Meu irmão explicou que tinha levado uma mordida no calcanhar, e por isso pulou para a frente. Nesse movimento, pode ter sacudido o bichinho para cima do banco. Todos rimos à vontade, com o pitoresco episódio.
Ao final deste relato, proponho uma reflexão. Abstraindo os aspectos ecológicos, pode-se dizer que há vantagem na parafernália eletrônica de que se compõem hoje os brinquedos infantis sobre a convivência das crianças do meu tempo com seres de carne e osso, como animais domésticos ou silvestres? Tenho cá minhas dúvidas.
Deliciosa mais essa crônica sobre seus verdes anos, Clemente. Ri bastante com a observação sobre as dificuldades de ministrar ao tamanduá uma dieta sistemática de formigas. E da decepção que acometeu todos quando, diante do que seria um banquete, o bicho disparou na direção oposta. Idílico também o destino da preguiça que venceu sua característica mais aparente e fugiu para uma espécie de éden da vizinhança. O jacaré miniatura também tem seu charme e viveu perigoso momento de glória na rodovia.
No que concerne sua conclusão, não estou autorizado a subscrevê-la como gostaria por não ter sabido o que teria sido de uma infância assim. Se sempre passei ao largo dessa aspiração – depois de ter sido atacado duas vezes por cachorros ferozes -, sei que meu irmão sempre quis ter um, coitado. O que meus pais sempre negaram sob a alegação de que um dia o cãozinho morreria e isso lhe causaria sofrimentos. Estranhíssima psicologia essa de meu lar de infância. Estranhíssima mesmo!
Parabéns!
Fernando, agradeço, mais uma vez, os seus generosos comentários. Este, por feliz coincidência, antecipa, em parte, o causo seguinte, em que falo da minha convivência com animais domésticos: cães, cavalos e vacas.
Aguarde-o, e verá que a morte de animais domésticos é mesmo dolorosa, e o era mais ainda no tempo em que não havia métodos de eutanásia, como hoje.
Enfim, amigo, viver dói. Mas nem por isso a vida deixa de valer a pena.
Viiixxeee! Quanto bicho. Moramos no mato durante a guerra. Mato mesmo, no interior de S.Paulo, o vilarejo mais próximo, Nova Europa, onde tia Luiza ia vender manteiga, requeijão e ovos produzidos no sítio, ficava longe pelo menos uma hora de charrete. Não lembro de tanto bicho selvagem. Alguma vez meu pai matou cobra, e ele tinha soro antiofídico que vinha buscar no Instituto Butantã. A gente tinha instruções para não brincar com sapo porque pode esguichar veneno, íamos até o rio pescar lambari com o papai (eu 5 anos, meu irmão Ulrich 3). Mosquitos, bicho do pé (um horror), periquitos e muitos pássaros que às vezes devastavam o milharal. Gafanhoto. Que mais? Acabou minha lista. Fiquei me esforçando por lembrar, provocada pelas lembranças de Clemente. Grilos. E tinha um verde, um inseto grande, acho que se chamava “louvadeus”, a gente passava horas observando. Abelhas da colmeia, que produziam nosso mel, e das quais levamos picadas algumas vezes. Achei divertido comparar a bicharada. Interior da Paraiba e interior de S.Paulo de agricultura familiar. Até os bichos eram diferentes. Lembro do complicado, com gás, que era matar formigueiros, no tempo em que ainda se falava que “ou o Brasil mata a saúva, ou a saúva mata o Brasil”. Meu pai matou muita saúva. Como se vê, minha relação com bichos é outra, pois não esqueço o quanto estrago podem produzir. Zero de idílico. Quem já teve bicho do pé quando criança? E toda noite, antes de botar a gente na cama, a mamãe nos colocava de pé sobre a mesa e sob o lampião, pelados, para checar se não havia alguma pulga abrigada em algum vinco do corpo.
Helga, seus bichos também me foram familiares. Meus filhos brincavam com sapos (caçotes), que não inoculam veneno. Por isso é que são considerados peçonhentos, mas não venenosos. As glândulas são localizadas nas costas, atrás da cabeça, e só se um cão os morder é que fica afetado, e passa mal.O predador de outros insetos, o louva-a-deus, tentamos criar, mas morreu logo. De gafanhotos, como de baratas, curiosamente, sempre tive medo (ou asco). Com peixes de mar, convivo até hoje, pescando. E os bichos de pé foram nossos hóspedes por muitos anos, quando a Praia Formosa era bem mais primitiva que hoje. E sua mãe fazia bem na cuidadosa inspeção a que submetia você e o meu amigo Ulrich. Eles podem abrigar-se em nossa pele nos cantos mais inesperados. Já achei um atrás da orelha de um dos meus filhos. E do outro, mais velhinho, escondido no… deixa pra lá…
Obrigado pelo comentário.