Hoje nossa rigorosa mestra propôs um exercício que, para ser sincero, a todos nós soou tão pueril que resolvi, de minha parte, levá-lo a sério. Por parecer excessivamente ginasiano, deduzi que devia me esforçar para acessar uma sutileza qualquer que me escapava. E que só a poderia vislumbrar, se percorresse o roteiro proposto. Logo, se esgotasse, em um único parágrafo, a idealização de um dia de vida em um rincão geográfico de que gostasse. Como são muitos esses palcos, e como quase sempre me proporcionaram indistintas alegrias, não pude eleger um só onde ambientar a trôpega prosa poética que me obceca. E, voando de galho em galho, transportei-me para paisagens múltiplas. Até o momento em que lhe entreguei as folhas garatujadas, já que em sua oficina estimula-se a redação à mão. Entre relatos óbvios e remotos, a sisuda professora passeou a vista por todos eles e, condescendente, insinuou que esforço é ingrediente que não me falta. Só não disse que era o único que sobrava. Mas, com muita elegância e pouca ironia, solidarizou-se a meus tormentos e devaneios. E acolheu esta criatura imperfeita que sou, ávida por emoldurar os capítulos finais de uma vida que só foi possível porque propelida pela fantasia, pelo desvario e pelo descompromisso rasgado com a vida real. Se tivesse tempo de chegar a ficcionista um dia, era sobre variantes desta tal vida que escreveria. E, no livro que jamais existirá, espalharia fragmentos em cinco lugares, segundo meus afetos. Como se faz com as cinzas dos mortos que puderam deixar lavrados os últimos desejos.
Vida na Andaluzia
Resolvi que moraria aqui num momento tão fortuito que você sequer imagina qual, minha amada Mari. Se desse o benefício de cinco palpites, e a prevenisse para que não pensasse em nada grandioso, nem assim você adivinharia. Isso porque diria que a tal epifania aconteceu quando voltávamos de Triana e atravessamos o rio Guadalquivir sob a chuva, apressando o passo para chegar enxutos à Giralda. Mas então o aguaceiro caiu e, resignados a ficar ensopados, ali mesmo estacamos e nos abraçamos. Pois bem, sinto dizer, mas ainda não foi nessa hora. Tampouco foi quando passeávamos pelos pátios à sombra da catedral e você disse que não queria acabar a vida só. E lembra de quando meu encantamento por Sevilha me levou a encher a bolsa de livros com as laranjas que coloriam as árvores baixinhas? Aquele foi só mais um belo momento de tantos. E quero que saiba: não foi sequer quando preparamos uma bagagem para o pernoite e subimos a Sierra Maestra com ânimo de quem faz uma travessura inominável, a ponto de sermos repreendidos por sua melhor amiga. Não, não foi quando a ouvi falar sobre as maravilhas da tauromaquia, no portão principal da arena da Real Maestranza. Pois já vou dizer. O instante em que decidi que não mais sairia daqui, foi quando saímos do almoço no Abantal e, a caminho do hotel, vimos as portas dos comércios cerradas para a siesta. Então, você parou para falar com a velha professora de piano. E ela te beliscou as bochechas e, com um ar entre maroto e reverente, sussurrou: “Brasil? Ah, encantada, Señor. Es guapa la Mari, verdad?”
Vida no Golã
Quando fui fumar um cigarro na varanda, devia ser duas horas da manhã. O céu estava claro e a relva seca, sem maior sinal de umidade. Tampouco fazia um frio inclemente. Tanto assim foi que vestia uma malha leve, dessas de meia-estação. Como Natan dormia, não tive que ouvir um sermão sobre o câncer de pulmão ou acerca das friagens traiçoeiras que, vindas do Mediterrâneo e dos desertos da Síria, ali se encontram nessa época do ano, desencadeando viradas de tempo bruscas. Não fumei o segundo cigarro de praxe e logo fui dormir, sempre ouvindo o ressonar de meu irmão que chegou de Haifa para aqui ficar uns dias. Mas quando despertei com o cheiro de café perfumando a casa, e um ronco de motor que me parecia ser o do carro de Nova, caminhei até a janela e, ao abrir o cortinado, vi a paisagem branca, sem qualquer vestígio do Monte Hermon no horizonte. Vesti-me com pressa e fui receber minha filha e o amado Miki, uma pestinha hiperativa que arrebata até corações de pedra. Então, enquanto Nova e Natan trocavam as novidades da política, Miki me falou que queria fazer um boneco de neve. Pois não é que ele ainda lembrava do que fizéramos no ano anterior? Peguei as chaves do carro, apertei o cinto de segurança dele e subimos em direção ao vilarejo druso de Majdal Shams, onde gosto de comprar frutas. “Vô, a neve vai derreter. Por que não fazer as compras depois?” Então tranquilizei-o e disse que ainda cairia muita neve nos próximos dias. E que quanto mais tarde fizéssemos o nosso, mais tempo o boneco duraria. Então, ele disse que não esquecêssemos de comprar uma cenoura para fazer o nariz. Naquela hora, me senti o mais feliz dos homens e deixei de lado tudo o que não ia nada bem.
Vida na Provence
Na primeira semana que nos instalamos na região do Lubéron, entendi que cometera um erro crasso ao aceitar aquela proposta. Isso porque nem mesmo a perspectiva de não desgrudarmos um do outro pelos próximos dois meses, aplacou aquele traço terrível que parecia constituir a segunda natureza de Véronique, senão a primeira: o gosto pela revanche; pelo permanente acerto de contas; pela literalidade das palavras; pela obsessão por saber se as colunas de créditos e débitos estavam equilibradas, e a tendência enfermiça em demonstrar que estava sempre do lado credor. O que me levou a crer, tão tolamente, que agora seria diferente? Por que tudo só ficou claro quando a vi se sentar no sofá, abrir o computador sobre os joelhos e me dizer, compenetradamente: “Podemos falar seriamente por vinte minutos?” Então vi que, na realidade, nossos encontros tinham sempre respeitado o mesmo padrão. Na primeira noite, saíamos para um jantar alegre. Contávamos as novidades um ao outro e eu abria o coração, inocentemente. Era tudo tão festivo quanto rever um amigo, mas, felizmente, tinha algo mais do que amizade em nossa luxuriante intimidade. E assim íamos dormir. Mas já no dia seguinte pela manhã, ao me trazer um limão espremido em água quente e uma enorme fatia de pão torrado com mel, começava o tal encontro de contas. De dez e-mails que ela mandara, eu só respondera oito. Das fotos que ela tirou, eu sequer agradecera o envio. Logo, que relação era aquela? Será que eu a via como uma idiota? Como pude me esquecer do padrão, meu Deus? E quanta vontade eu tive de matá-la quando, esta manhã, ela entrou no quarto com uma bandeja e recitou a fórmula: “Podemos falar por vinte minutos olho no olho?” Era para resolver as pendengas da véspera. Então visualizei uma sequência de túneis em que o sol aparece por meio minuto, e logo sumimos de novo na escuridão fechada. Mas agora era tarde. E a vantagem era da contadora helvética.
Vida na Patagônia
Morar em Buenos Aires, convenhamos, todo mundo mora. Que espécie de expatriamento seria o meu se, ademais de permanecer nos limites da latinidade, me resignasse também a encontrar brasileiros a três por quatro nas ruas do Once? E que sentido teria ir para Mendoza, se lá ficaria refém da roda de amigos de Francesca Gilardi, e das infinitas tentações boêmias das enotecas da Cordilheira? Fiz bem, portanto, quando segui a intuição e desci o mais que pude, para me fixar nesse terraço de onde vejo a geleira e onde sou o primeiro a receber ventos tão fortes que até os minerais se encolhem em defesa. Inverno como verão, ganhei lábios rachados e, contrariamente ao que pensava, não reduzi a vida ao espaço doméstico, entre a escrivaninha e a cama. Não. O ar rarefeito e a beleza da natureza fizeram sim com que reatasse com as caminhadas que marcaram minha juventude. E, à custa de me sentir tão hipotecado a elas, passei a comer menos, o que logo me obrigou a apertar as duas únicas calças que tenho. Nada resulta mais encantador, contudo, do que as nuvens, o sabor dos ouriços iodados, e a beleza rústica de Martina, a distinta proprietária do “El Farolito”. Nos longos passeios que dou de casa até o pequenino centro, recusando as caronas ocasionais que me oferecem no trajeto, paro para ver o céu. Se o fotografasse cinco minutos depois, eis que já estaria reconfigurado, quase irreconhecível, nas quatro estações. O que mais? Ah, os ouriços. O amor à carne esponjosa ocre-amarelada tem que ser contido. Se erro a medida, fico sem poder degustá-la por uma semana. Mas quando estamos em boa fase, os ouriços me alegram o meio do dia. Quanto a ela, Martina, que é quem os abre à minha frente, comove-me o sotaque de fim de mundo: “Los herizos de Don Calatrava. Que los desfrute”.
Vida no Agreste
Já adolescente, ouvia de meu pai que seus ritos matinais eram sagrados. Tudo começava pelo frugal primeiro café da manhã. Logo seguido de uma caminhada. Então, o banho; o segundo desjejum, este copioso. Os remédios, vestir o terno e, por fim, ganhar a rua. A verdade é que ele se comprazia no cumprimento dessa liturgia e temia quebrá-la por um só dia que fosse, salvo aos domingos. Se isso acontecesse durante a semana, dizia, era como fumar um cigarro. O mau passo poderia levá-lo a perigosa recaída e estaria rompido o ciclo virtuoso. Coisa de velho, eu pensava. Hoje acordei cedo e o termômetro marcava 16º. As pétalas dos canteiros estavam salpicadas de orvalho e tomei uma grande lufada de ar fresco ao sair pelo pequeno portão. Tudo correndo bem, só voltaria a transpô-lo dentro de duas horas, depois da caminhada regulamentar do parque até o centro, intercalada pela leitura das manchetes do noticiário, sentado na praça Dom Moura. Uma vez de volta à casa, a vida se decomporia em pequenos ritos sem conexão entre si, nem grande importância aparente. Até que as primeiras cigarras viessem me presentear com a dádiva de uma inverossímil alegria de fim de tarde. E eu que passara a vida associando este momento a estados depressivos. É só então que visto o paletó de meia-estação, boto um cachecol puído no bolso e desço até o comércio. Ali aguardarei o ônibus da “Progresso” que não chegará e, entreouvindo conversas cantadas, fecharei os olhos e pensarei no cheiro das maçãs argentinas de minha infância, embrulhadas em papel de seda azul. Só então subirei de volta para casa, pensando no quanto ainda se pode ser feliz em Garanhuns.
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