O hebdomadário desta semana (relevem o pleonasmo) vem com atraso de mais de um mês! Talvez ele tivesse sido escrito antes se, em 31 de janeiro último, eu tivesse lido a Veja que então foi às bancas. Devo explicar que hoje em dia só leio a Veja quando filo um exemplar antigo na sala de espera de consultório médico. Mas, contrariamente ao que se poderia pensar, não é o anti-esquerdismo sistemático da revista que me faz detestá-la. (Se fosse assim, eu adoraria a Carta Capital e seu “lulismo” sistemático, o que não é o caso.) O que nela mais me incomoda é a sua arrogância. Mas esse assunto vem depois. Por enquanto, vou fazer uma espécie de mea culpa – e baseado na Veja! Foi assim.
Estando eu um dia desses na famosa “sala de espera” (o vaticínio é perfeito) onde a gente espera os médicos que sempre chegam atrasados, filei a revista de 31 de janeiro passado, que só agora li. Uma matéria intitulada “Os donos do mundo” chamou minha atenção, porque há coisa de duas semanas tinha soltado os cachorros contra “seis bilionários brasileiros [que] concentram uma riqueza igual à renda dos 100 milhões de brasileiros mais pobres”. Na minha santa inocência, achava que isso era coisa da República dos Bruzundangas. Que nada! Na citada matéria, havia também a informação de que nos Estados Unidos a coisa é pior: os três americanos mais ricos abocanham fortuna igual à renda dos 160 milhões de americanos mais pobres! E tem mais: os 42 homens mais ricos do mundo possuem riqueza igual à de 3,7 bilhões de terráqueos. Na hora, me lembrei da famosa anedota da merda no bigode. Lembram? Para relembrá-la, vou fazer uma transcrição de como Pedro Nava, com sua graça inimitável, a conta no seu Baú de Ossos: “A vítima ao acordar sente um cheiro de carniça e institivamente verifica se não se deitou, sentou ou pisou numa poia de merda. Nada. Procura em torno e nos outros. Nada. Esquadrinha canto por canto, pergunta se os demais não estão sentindo, e sempre nada. Duvida do próprio olfato e para comprová-lo aspira com força: então está perdido, porque é como se todas as covas e latrinas da cidade lhe assoprassem sob as ventas o hálito cadavérico e excremencial que tudo empesta.” E aí vem a conclusão inevitável: “É o mundo todo!” Pois é, é o mundo todo. Para dar um jeito nessa doideira, a matéria da Veja termina com o lero-lero habitual sobre investimentos em educação e tributação mais justa, além de “crescimento econômico com geração de empregos” (itálicos meus). E conclui: “Sem isso, os populistas continuarão dizendo que… Bem, continuarão dizendo besteiras”. Assim, sem mais nem menos. Com o que volto à história da arrogância da revista.
Exatas doze páginas depois, numa outra matéria intitulada “Elas vão substituir você”, vem a informação de que, “até 2030, as máquinas devem acabar com metade dos trabalhos existentes hoje.” A conclusão inevitável está no lead da matéria: “É um cenário que trará desemprego” (itálico também meu). E qual é a receita para essa outra doideira? Ela também está anunciada no lead: seremos forçados a ser mais… “produtivos”! Como, cara-pálida? Competindo com as máquinas que provavelmente (continuo citando a matéria) extinguirão 99% dos operadores de marketing?, 94% dos contadores?, 96% das recepcionistas?, e 89% dos motoristas? Para compensar, vem a informação de que deverão continuar imprescindindo do trabalho humano atividades como a criação artística, a psicanálise, a arquitetura virtual e até a arqueologia (a chance de arqueólogos serem destronados por robôs é de apenas 0,7%! Não deixa de ser uma boa notícia…) A matéria, diga-se de passagem, de forma alguma escamoteia o medo que provoca esse “admirado – e temido – mundo novo” (referência explícita à famosa distopia de Aldous Huxley). Mas, confrontando as duas matérias (publicadas no mesmo número de uma mesma revista), irrita a singeleza com que a primeira diz que a solução consiste na geração de empregos” e descarta, com a insolência de sempre, os “populistas” que “continuarão dizendo besteiras”, e a conclamação, na segunda matéria, para que sejamos mais “produtivos” – isso num país em que não se vê como milhões e milhões de desempregados, a imensa maioria de pouca escolaridade, poderão se encaixar num mundo em que aparentemente só haverá lugar para artistas, psicanalistas, arquitetos e arqueólogos… Vai sobrar gente pacas!
E o que vai ser dessa gente toda? Uma das respostas entrou-me ontem pelos olhos, mas também pelos ouvidos. Voltando da cidade para casa, tomei o metrô na Estação Recife, perto de onde trabalho, e desci na Monte dos Guararapes, perto de onde moro. O vagão, como sempre, estava entulhado daquilo que conhecemos como “povão”. Eram “pretos, pobres e mulatos / e quase brancos quase pretos de tão pobres”, como diria Caetano Veloso (Haiti). Brigando pelo espaço com os passageiros, a feira habitual (mas que me parece cada vez maior) de ambulantes gritava: “água! água! água!”; “paçoca é um real!, paçoca é um real!, paçoca é um real!”; “olha o amendoim!”; “olha o sonho de valsa!”; “olha o gospel!, olha o gospel!, “olha o gospel!, cinquenta música por cinco real!”; “olha!, olha!, olha!”…
OLHEM!
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