Frederico Toscano

Estátua de Carl Kundmann (1842) em homenagem a Schubert no arborizado Stadtpark, em Viena, na Áustria.

A trágica e breve vida de Franz Peter Schubert (1797-1828), um dos maiores melodistas da história, é constantemente encoberta por sua música otimista. Aos 17 anos já havia atingido a maturidade musical na composição, e sua vasta produção mostra espantosa fluência, aliada a uma imaginação musical rica e variada. No epitáfio de seu túmulo lê-se: “A arte da música enterrou aqui grandes riquezas, e esperanças ainda maiores”.

Quando Schubert faleceu, um ano e oito meses após Beethoven, nenhum jornal de Viena reportou a morte de um grande artista, mas apenas de um músico que tivera uma vida totalmente dedicada à arte e que fora imensamente amado pelos amigos. Ao contrário de Beethoven, cujo funeral foi assistido por cerca de vinte mil pessoas, Schubert teve um funeral modesto, com a presença da família e de seu pequeno círculo de amigos.

Schubert, em sua timidez, não gostava de qualquer publicidade. Jamais se importou se sua música seria um dia executada. Seu interesse estava sempre na nova obra a compor. Em vida, teve publicado menos de um terço de suas canções e pouquíssimas obras instrumentais. No entanto, muitas de suas canções circulavam em Viena em cópias manuscritas entre um seleto grupo de amigos. Após sua morte foram exatamente esses amigos, entre eles compositores renomados, que fizeram de tudo para resgatar, restaurar, editar e difundir sua música. O mundo assistiu atordoado ao aparecimento, ano após ano, de centenas de obras inéditas.

Nos seus breves trinta e um anos de vida, Schubert havia composto mais de mil obras, dentre as quais mais de seiscentas canções, quinze quartetos de cordas, sete sinfonias completas e seis incompletas, algumas óperas, seis missas e várias obras sacras, além de um grande número de obras de câmara e piano solo (incluindo sonatas, improvisos, momentos musicais e várias danças).

A Sinfonia Inacabada foi composta em Viena, em outubro de 1822. O subtítulo “Inacabada” vem do fato de existirem apenas os dois primeiros movimentos. Em uma carta de 7 de dezembro de 1822 para seu amigo Josef von Spaun, Schubert não incluiu a Sinfonia na lista de suas composições recentes, provavelmente porque, naquela data, ele ainda não a via como uma obra terminada. Há quem afirme que o compositor teria abandonado a partitura após receber um grave diagnóstico médico que o deixou bastante perturbado – Schubert havia contraído sífilis naquele ano.

Entretanto, de acordo com Joseph Hüttenbrenner (um dos irmãos Hüttenbrenner, amigos do compositor), por volta de 1824, Schubert enviou o manuscrito dos dois movimentos ao seu irmão, Anselm, em agradecimento pelo Diploma de Membro Honorário “in absentia” da Sociedade Musical da Estíria, com o qual havia sido homenageado.

Se acreditarmos que Schubert dificilmente seria capaz de enviar uma obra inacabada como agradecimento, é possível que ele tenha percebido que a Sinfonia já estava completa com seus dois maravilhosos movimentos, mesmo que, na época da composição, essa percepção ainda não estivesse clara (fragmentos de um terceiro movimento – Scherzo – foram encontrados no verso do manuscrito).

Por outro lado, se a versão da doação da Sinfonia em agradecimento ao Diploma foi uma farsa, seria razoável supor que os irmãos Hüttenbrenner se apropriaram indevidamente do manuscrito. Afinal de contas, o fato é que Anselm reteve a Sinfonia e nunca a doou à Sociedade. Por mais de quarenta anos os dois irmãos mantiveram o manuscrito em casa sem jamais mencioná-lo a ninguém, nem a Ferdinand, irmão de Schubert, nem nas memórias que Anselm escreveu em 1854, a pedido de Franz Liszt, nem nas inúmeras cartas que escreveram em resposta às perguntas dos primeiros biógrafos de Schubert.

No final dos anos 1850 os irmãos Hüttenbrenner começaram, pouco a pouco, a mencionar a existência da Sinfonia e, apenas em 1865, trinta e sete anos após a morte de Schubert, o manuscrito foi entregue ao regente Johann Herbeck, que a estreou em Viena na Gesellschaft der Musikfreunde, no dia 17 de dezembro de 1865.

O movimento que inicia a Inacabada (Allegro moderato) começa com uma lenta introdução nos violoncelos e contrabaixos. O tema de abertura é primeiramente executado pelo oboé e clarinete enquanto o segundo grupo temático inicia-se com uma bela melodia nos violoncelos, prontamente respondida pelos violinos. O caráter misterioso da introdução será retomado na seção central e na coda. Tem-se sugerido que o redemoinho confuso deste movimento espelha o estado de espírito de Schubert ao descobrir que contraíra sífilis. Ao contrário de sua Fantasia Wanderer – a mais nitidamente virtuosística das obras para piano do compositor, do mesmo período – observa-se aqui uma música introvertida, com cada um dos temas principais sendo introduzido tão serenamente quanto possível. O movimento é marcado por passagens de delicado lirismo, intercaladas por arroubos impetuosos:

Por sua vez, o segundo movimento (Andante con moto) possui dois temas: o primeiro, executado pelos violinos, e o segundo, pelo clarinete. Um episódio dramático marca a volta dos dois temas. Em sua segunda aparição, esse episódio nos conduz a um final surpreendentemente tranquilo:

A ressurreição tardia da Sinfonia “Inacabada” (D. 759) gerou alterações em sua classificação catalográfica. Embora composta em 1822, foi a oitava sinfonia de Schubert a ser descoberta, por isso recebeu o título de Sinfonia nº 8. Na época, a Sinfonia nº 7 era a “Grande” Sinfonia em Dó maior (D. 944), que havia sido composta entre 1825 e 1828. Tal inversão se deu pelo fato da “Grande” ter sido descoberta décadas antes, em 1839, por Robert Schumann, e já se encontrar publicada quando da descoberta da “Inacabada”. Com o tempo, por uma questão cronológica, a “Grande” acabou sendo chamada de Sinfonia nº 9, e o esboço de uma sinfonia (D. 729) de 1821 acabou preenchendo o lugar vago do nº 7. No entanto, em 1978, os editores do Catálogo Temático de Schubert resolveram não mais contar os vários esboços de sinfonias deixados por Schubert. Dessa maneira, a Sinfonia “Inacabada” passou a ser chamada de nº 7 e a “Grande”, de nº 8, embora muitos ainda se refiram a elas pela antiga numeração.

A Sinfonia Inacabada, que alguns musicólogos afirmam antecipar a música de Anton Bruckner, tornou-se popular ao ser incluída em várias trilhas sonoras de filmes no cinema e na televisão. No filme “Minority Report”, por exemplo, é escutada ao fundo da cena na qual o protagonista (Tom Cruise) analisa os casos de crimes com sentença prévia. O início do primeiro andamento é usado no desenho “Os Smurfs” como tema do personagem Gargamel. Na série “Os Simpsons”, é tocada pela orquestra escolar a que a personagem Lisa pertence. Também é tocada num episódio de “Gasparzinho”, ao piano. Em “A Idade do Ouro” de Luis Buñuel (1930) o primeiro movimento vai à cena, assim como é usado por Agnès Varda no início do seu filme “Les plages d’Agnès”. Foi até mesmo tema de abertura do disco “Angel’s Cry” da banda de heavy metal brasileira Angra.

A saúde de Schubert deteriorou-se no auge de sua atividade criativa. Teria morrido de febre tifoide, ainda que vários biógrafos apresentem outras possíveis doenças, a 19 de novembro de 1828, na casa do seu irmão Ferdinand, em Viena. No Cemitério Central da capital austríaca, o túmulo de Schubert se localiza perto da sepultura de Beethoven, compositor que venerou em vida, conforme desejado por ele. Considera-se que “a vida de Schubert foi um pensamento íntimo e espiritual; raramente expressa em palavras, manifestava-se integralmente na música”, nas palavras emocionadas de Franz Eckel, amigo de infância do compositor.