Luciano Oliveira

Vidas Secas

Vidas Secas 

Em 20 de março passado completaram-se 60 anos redondos da morte de Graciliano Ramos. Junto com Machado de Assis, o “velho Graça” costuma figurar no panteão da santíssima trindade (o outro sendo Guimarães Rosa) da literatura brasileira. Há alguns anos, no curso da composição de um livro sobre ele e Machado a que dei o nome de O Bruxo e o Rabugento (publicado – perdoem o descarado merchandising – pela Vieira & Lent, Rio de Janeiro), inventei de fazer uma viagem a Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, cidade de onde ele foi prefeito entre 1927 e 1929 e, durante o ano de 1932, escreveu boa parte de São Bernardo – a meu ver sua obra-prima – na sacristia da igreja local. “O Espírito sopra onde quer” – diz João, capítulo 3, versículo 8. Esse toque eclesiástico na vida de um ateu na época já simpatizante do comunismo, e já cultivando o famoso “ódio ao burguês”, evocou-me o belo versículo bíblico sobre a liberdade do Espírito. Tinha a curiosidade de ir lá, ver os locais onde o Espírito soprou…

Talvez porque estivesse influenciado pela redescoberta recente da obra de Graciliano, parti com o olho afiado. A primeira imagem que me chamou a atenção, cruzando de carro a fronteira de Alagoas, foi um imenso outdoor com os seguintes dizeres em letras enormes: “Alagoas – Terra da Liberdade”. Por que da Liberdade? – me pus a imaginar. Poderiam ter igualmente posto terra da Igualdade, ou da Fraternidade, ou do Futuro, ou da Prosperidade – qualquer coisa serviria. É tipicamente uma dessas fantasias bacharelescas – semelhante à do Maranhão como uma “Atenas brasileira”, já ironizada por um jovem Graciliano no longínquo ano de 1915 –, sem nenhuma correspondência com a realidade em torno. Escancarado na porta de entrada de um dos estados mais miseráveis do país, ainda com meninos esfomeados como os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória de Vidas Secas, aquele outdoor me pareceu simplesmente um acinte.

Na entrada da cidade um outro letreiro, desta vez nada patriótico, atraiu minha vista: “Kactu´s Motel” – assim mesmo, com “k” na frente, “u” no final e o possessivo inglês, tornado universal pela onipresença da cultura americana no mundo, unindo o nome do local e sua destinação. Tudo muito típico dessa espécie de macaquice “estilizada” que se encontra hoje em dia em qualquer lugar do Brasil ninguém sabe muito bem por quê. Mas certamente o nosso espírito colonizado misturado com simples ignorância linguística explica muita coisa. Já entrando no perímetro urbano, bois e vacas vagando num terreno baldio – que duas traves improvisadas indicam destinar-se a eventuais partidas de futebol – fazem-me recordar que o prefeito Graciliano Ramos, mais de setenta anos atrás, havia aplicado uma multa no próprio pai por deixar seus animais soltos na rua, desobedecendo a uma ordem municipal. Ou a postura foi revogada ou, no país do faz-de-conta, simplesmente ninguém mais a aplica.

Essa impressão de “Brasil profundo”, renitente apesar da casca de modernidade anunciada no letreiro do “Kactu´s Motel”, nas antenas parabólicas em cima das casas, nas ruas de pedestres, nas locadoras de vídeo, num hotel três estrelas etc., se reforça quando, instalado num restaurante, chega um menino engraxate que não consegue ocultar a sua verdadeira ocupação por mais de alguns minutos: ao ver que calço tênis, não perde tempo com a clássica pergunta – “Vai graxa aí, doutor?” – e vai logo ao assunto que o trouxe até ali: “Quando o senhor não quiser mais deixa pra mim?” A fome – minha, naturalmente –, que tinha se tornado voraz depois das longas horas de estrada, some na hora! Brasil renitente, dizia eu. Não é mera força de expressão. Em 1904, quando contava onz e anos de idade, o menino Graciliano Ramos publicou o primeiro texto que dele se conhece num jornalzinho do Internato Alagoano, o colégio onde então estudava na cidade de Viçosa. O jornalzinho tinha o nome rebarbativo de O Dilúculo (a palavra significa Alvorecer) e o texto do jovem estreante se chamava “O Pedinte”. Eis como começa: “Tinha oito anos! A pobrezinha da criança sem pai nem mãe, que vagava pelas ruas da cidade pedindo esmola aos transeuntes caridosos, tinha oito anos.” Brasil renitente, dizia eu. Quase cem anos depois, estava eu ali a viver a constrangedora condição não de transeunte, mas de “turista caridoso”.

A visita à casa onde viveu Graciliano Ramos, hoje transformada em museu, não chegou a me transmitir a emoção que esperava sentir. As paredes altas, austeras, onde ainda se vêem incrustados grossos cabides de rede, exalam um inevitável clima de repartição cultural onde atenciosos funcionários fardados querem lhe explicar detalhes da vida do “filho ilustre da terra” que você já conhece. Numa sala, exibem-se vários diplomas de Cidadão Honorário outorgados pelas cidades da redondeza. Um deles reteve minha atenção – como reteria a atenção de um provavelmente irritado Graciliano com a grafia do título que lhe deram: “Cidadão Honorário Post-morte”. Fiquei imaginando o “velho Graça”, presente ao descerramento da placa, engolindo um impropério diante do duplo atentado ao vernáculo e ao latim. Da mesma forma, a visita à igreja nada de especial me transmitiu, apesar de ser uma bela construção e de estar localizada num alto de onde se tem uma magnífica visão da cidade. Mas também o entorno não ajudava a evocar a paisagem humana e social dos anos 30. Na frente da escadaria da igreja, uma nesga de praça tinha se transformado em ponto de transporte coletivo. Uma “Topic” – ou algo do gênero – tinha as portas abertas e o som do carro, na maior altura, espalhava pelas ruas que um dia foram percorridas pelo grande escritor uma dessas músicas infectas com letras pornográficas (será que se chamam porn-music?) que se toca hoje livremente em qualquer rádio do país. O refrão dizia: “Quem entra nesse carro é comida/ Por isso o nome dele é marmita”…

Foi no final das contas uma jornada agradável e fiquei contente por tê-la feito. A verdade, porém, é que terminei não me deparando com o sopro do Espírito. Talvez seja inevitável. Afinal, está dito que ele sopra apenas onde quer – e a quem quer. Essas voltas ao passado terminam não dizendo muita coisa. Há como que um abismo intransponível entre os muros dos quartos onde foram produzidas grandes obras e o resultado desse labor. É como a Itabira de Drummond reduzida a uma fotografia na parede: não adianta lá voltar. O que importa é o poema! Em verdade, em verdade vos digo: a emoção que sinto ao ler uma página de São Bernardo, renovada a cada leitura, não a encontrei no que sobrou da sacristia onde ela foi escrita. Lembrei-me, enquanto comp unha este texto, de uma bela reflexão de um outro grande desencantado, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, a propósito da transitoriedade dos homens e da perenidade de suas obras. Não sei se a subscrevo inteiramente – mas a transcrevo:

“Vistas numa escala milenar, as paixões humanas se confundem. O tempo não acrescenta nem retira nada aos amores e aos ódios vividos pelos homens, aos seus engajamentos, às suas lutas e esperanças: no passado como hoje, são sempre as mesmas. Suprimir ao acaso dez ou vinte séculos não afetaria de maneira sensível nosso conhecimento da natureza humana. A única perda irreparável seria a das obras de arte que esses séculos viram nascer. Pois os homens não diferem, e até não existem, senão através de suas obras. Como se a estátua de madeira tivesse dado à luz a árvore, só elas fornecem a evidência de que no curso do tempo, entre os homens, alguma coisa realmente se passou.”