Um indício do quão afinado está um casal pode ser medido no bufê do café da manhã do hotel. Quando ambos passaram uma noite intensa, e, inevitavelmente, despertaram fundidos numa anatomia sem pé nem cabeça, o balé que dançarão no salão do restaurante é um “pas-de-deux” que obedece a pontos claros de marcação. Enquanto ela se serve de cereais com frutas secas, eis que ele atravessará o recinto confiantemente – achando que ninguém o observa – e estaciona bem ao lado da amada, desviando a rota da mesinha de queijos. Fará isso só para, discretamente, deslizar-lhe as costas da mão nas nádegas, procurando com a ponta das unhas uma fonte de calor. Despejando leite na tigela, ela sorrirá e, enlevada, ronronará. “Stop it, please” – assim mesmo, em inglês.
Se for latina, fará um ar maroto, insinuando que tanta provocação é covardia; que isso não se faz com quem está de mãos ocupadas e, a continuar nesse diapasão, ela vai derrubar a cuia e ambos darão vexame. Ele, em última instância, terá sido o culpado. Sendo oriental, a reação é distinta. Uma japonesa corará e olhará em volta. Baixinho, dirá: “Shotto mate, kudasai”. Coreanas e chinesas, rápidas, lhe darão um leve cocorote nas falanges e tailandesas ficariam tão afogueadas que precisariam borrifar água no rosto no banheiro. Já filipinas nada diriam. Até escandinavas, tidas por arredias, se entregariam à dança com despudor e aflorado prazer. Alemães serão pragmáticas: calma, agora a comida é a que está na mesa. Reponhamos as energias: “Gesundheit ist doch alles”.
Mas o mesmo pode se dar quando ele, agora a vítima feliz do assédio, estiver debruçado sobre o “réchaud” de três compartimentos, ocupado em se servir de ovos mexidos, cogumelos refogados e lâminas sequinhas de bacon. Então, virá a desforra. Chegando por trás, na surdina, ela o abraçará pela cintura como quem o tivesse visto por acaso. Então ele sorrirá com a mesma bonomia e se sentirá tão poderoso quanto um leão soberano na savana, contemplando fêmeas dispostas a lhe saciar os caprichos. “Salope”, murmurará se um dos dois for francês. Em suma, a todo momento o casal trocará sinais não-verbais de que um não fica sem o outro; que querem se engolir ao primeiro sinal de privacidade, longe daquela malta intrusa e burocrática – feita de comilões que não sabem o que é trepar.
Se os ritos de pé são inconvenientes porque públicos, sentados os amantes se sentem deitados. Uma vez à mesa, não é incomum que os pés dela repousem em cima dos dele, ou vice-versa; ou mesmo que um acaricie com a ponta do dedão a panturrilha do outro. Quando não, que pousem o calcanhar entre as virilhas dele e, por que não, dela – quase pantanosa. Se for sábado, sorrirão sob qualquer pretexto porque amanhã ainda estarão ali. E um dia bonificado naquele pique vale o Taj Mahal. O que significa que têm uma eternidade para se entregar a fantasias alternadas. Isso também passará por uma jornada de bons restaurantes e até compras. Ou seja, levarão para a rua a concupiscência que se traduzirá em presentes despropositados e sorvetes lambidos a dois.
Já se é domingo, o salão verá um casal tenso. Uma lágrima pode escapar inadvertidamente ao menor pretexto. O rito do desjejum será mais sumário e, no chá, um deles proporá: “Vamos nessa? Encaremos a vida?” Quem diria? Quer dizer que o dia de ontem não era vida? Bom saber. Mesmo que os hotéis estiquem o check-out, restará pouco clima para uma despedida voraz. E, creiam, a perspectiva da partida – e das incertezas daí decorrentes – anulará a inventividade que antes sobrava. Cada um se encapsulará: escovará os dentes; fará uma malinha; apagará pistas; matará a ´persona`; encarnará de volta Maria ou João; afetará alguma indiferença e demonstrará um mínimo de saudades da vida extramuros. Isso causará leves ressentimentos, mas ninguém passará recibo. Seria burrice.
Mas depois, quase à saída, quando ela já estiver paramentada para enfrentar o mundo, ele então lhe pedirá um afago de despedida que, obviamente, ela não se recusará a fazer. Pelo contrário, ficaria preocupada se assim não fosse. Sempre é tempo de ter os méritos reconhecidos. Então, aliviado e recomposto, ele lhe dirá que agora precisam descer. Enquanto formaliza a saída na recepção, ela teclará no celular. Do outro lado, alguém lerá que o congresso foi bom, mas previsível; e que ela estará em casa em um par de horas. Dirá que está um pouco gripada e indisposta, e que sonha com uma boa cama ao chegar. Seria enxaqueca? Antes de desligar, se tiver falado ao aparelho, e não só teclado uma mensagem, o amante terá ouvido um genérico: “Eu também”.
Minutos depois, se vistos do satélite, serão só dois pontos em acelerada dispersão.
***
Texto lindo. Inspirado e inspirador.
Nos faz sentir a cena como se lá estivéssemos, na pele dos personagens ou nos olhos dos que os assistem.
Impressionante, omo você escreveu um texto onde, quase todo mundo se viu nele.
Prezado Nealdo,
Honrado em receber sua visita pela primeira vez. Mais ainda em acolher seu comentário lisonjeiro. Pois se “quase todo mundo se viu nele” – nas linhas e entrelinhas de um texto assumidamente ousado -, é sinal de que o mundo ainda conta com afortunados. Conta com gente, em suma, comprometida com o prazer e o encantamento, não importa quão fugazes. Pelo jeito você também é desses que enxergam na química de um casal um laboratório de possibilidades amplas. Amar e escrever, Nealdo, são os chamados jogos infinitos cujos desfechos estarão sempre abertos.
Abraço.
Fernando
Gostei viajante. Texto sensível, com aguçada percepção das características das nacionalidades. E como disse seus amigo acima, todo mundo se vê em algum momento. Bjs
Querido amigo Fernando Dourado,
Quando li pela primeira vez, junto com “S”, esse seu delicioso texto, não pude deixar de, a exemplo dos comentários dos amigos acima, me ver inserido na narrativa.Afinal, ninguém chega aos 56 anos, solteiro (e treloso!), impunemente…ainda bem que as coisas mudaram.
Por coincidência, em fevereiro passado fomos a um casamento de uma amiga em Pipa e, nos hospedamos na Pousada Sombra e Água Fresca (mais do que justifica o nome).
Apesar de lotado, a sensação, pela indescritível tranquilidade, é que o local estaria vazio.
No primeiro dia, no café da manhã, me flagrei observando diversos casais, a maioria estrangeiros, que se deslumbrando com a magnífica paisagem, entre um café e uma tapioca, deixavam revelar resquícios de uma noite de muito sexo.O local sugere e estimula o amor, aqui talvez menos casual que dos seus citados protagonistas, mas nem por isso, com menor prazer e intensidade.
“S” que o diga…
Belo texto… descreve com sensibilidade o eterno “dois pra lá, dois pra cá” dos casais, seja lá em que ritmo for.
Olá,
Quem ler esse comentário, é bom que saiba que ele é endereçado prioritariamente a dois leitores e uma leitora que me mandaram e-mails para minha caixa postal pessoal. Ora, sendo ambas as mensagens alusivas ao texto acima, decidi fazer um breve comentário a respeito e, por dever de fidelidade, registrá-lo de público, no espaço preferencial dos colóquios onde eles nasceram. Assim, rendemos os créditos a Será? – que propiciou nosso encontro.
Pois bem, se as palavras que recebi sobre “Coreografias de salão” foram, no geral, muito lisonjeiras – na linha dos “posts” aqui publicados -, os três missivistas acharam de extremo mau gosto que eu tenha escrito “feita de comilões que não sabem o que é trepar”. Por que, perguntam, uma pessoa de recursos linguísticos razoáveis incorre numa expressão tão chula? Em assim fazendo, não estaria desmerecendo a harmonia e o encantamento do cenário? Seria uma tentativa marota de criar uma mitologia própria de alguns “tons de cinza”?
Pois bem , embora ache inadequado explicações e justificativas sobre o que já está devidamente registrado, queria dizer apenas que a expressão traduziu um diálogo interno que todos nós travamos nas mais variadas circunstâncias. No caso aludido, me refiro a um casal enamorado pela própria paixão que os anima. Qualquer pessoa que tenha vivido estado de espírito similar, sabe o quanto a embriaguez da paixão oblitera o que está em volta. Ou seja, tudo passa a ser como se só os dois detivessem a chave de acesso para a plenitude. Alguém me falou à época: quem não conheceu esse sentimento, perdeu uma dimensão importante do que é viver. Concordo.
Assim sendo, no diapasão desse diálogo triunfalista que travamos de afogadilho com nossos sentimentos, não há lugar para eufemismos. Nem para formulações rebuscadas e anódinas como seria o caso de “fazer amor”. Na crueza sem censura do diálogo interno, os verbos são daí para pior. Eles reproduzem o que é murmurado ou mesmo escandido nas alcovas – estejam elas à meia-luz ou deliberadamente iluminadas.
Essa é a explicação para a “flagrante falta de gosto” ensejada pelo verbo empregado. Deixo a outros explicar já que não entendo lhufas de psiquiatria. Mas a pulsão do sexo e do desejo nem sempre comporta eufemismos ou preciosismos. Sob pena de não acontecer. Pelas suscetibilidades feridas, minhas desculpas. Muito embora, confesso, insinceras.
É isto.
Fernando
Fiquei sem fôlego e me imaginei na cena. Muito bom. Parabéns!
Então está cumprida a finalidade, Nara.
Obrigado.
FD