Sérgio C. Buarque

Oil on canvas - Human Delusion #3 -By Howard Ross.

Oil on canvas – Human Delusion #3 -By Howard Ross.

Ao longo do verão, as papoulas se multiplicam nas cercas vivas das casas que contornam as pequenas e elegantes ruas da cidade, todas descendo na direção do rio que corre, lento e grandioso, serpenteando o vale. O jovem Guilherme desce todos os dias de bicicleta pelas calçadas e ao passar próximo das cercas, colhe uma papoula vermelha e viva, escolhendo a mais bela e viçosa enquanto elas se oferecem e pedem para serem as escolhidas do dia. Guilherme joga um sorriso radiante para a florida cerca, faz um gesto largo para a paisagem e vai rápido e ansioso para a margem do rio.

Todos os dias, o mesmo movimento. Guilherme desce da bicicleta com a flor levantada na mão e se aproxima da figueira à margem do rio, olha a escultura de madeira que representa uma bela jovem em estilo clássico. Sorri para o rosto de Elena, como ele a chama, se posiciona na altura do seu corpo e insere a papoula num pequeno espaço dos cabelos endurecidos do ébano que forma a figura feminina. Nos seus pés vão se espalhando algumas flores secas e murchas dos dias anteriores.

Durante várias semanas, esta cena se repetia e terminava com a papoula nos cabelos densos e rígidos de Elena e os lábios se encontrando numa sensual manifestação do amor florescente de verão. Assim sentia Guilherme, mesmo que a sua amante não se movesse nem correspondesse ao beijo, como ele sonhava. O rio parecia gemer numa saudação do encontro, os pássaros cantavam uma melodia gloriosa e os pequenos animais cercavam a árvore, admirados com o milagre do amor e da natureza.

Numa manhã nublada que anunciava as últimas semanas do verão, Guilherme desceu pela vereda florida em busca da papoula para embelezar e seduzir Elena, e a cerca viva quase se projetava na sua direção, fechando a calçada, impulsionada pelo movimento sincronizado de todas as flores se oferecendo com animação para o jovem amante. Como sempre, ele não parou e recolheu a flor que alcançou com o movimento das mãos, para alegria da papoula escolhida e desalento das que ficaram esperando novas oportunidades de se tornar a oferenda do amor. Ele não percebeu, mas colheu a única papoula amarela do jardim, singular destaque numa vasta mancha vermelha das cercas vivas.

Como todas as manhãs, ele viu Elena à espera, esbelta e elegante, ao lado da figueira, como se soubesse que o belo e jovem amante viria para iluminar e encantar o seu dia. Neste dia, com a papoula amarela na mão, Guilherme se aproximou, com o mesmo sorriso triunfante, retirou a flor murcha e vermelha do dia anterior e acomodou a nova e viçosa papoula amarela no canto da orelha inerte e fria da sua amada. Ele se enroscou na escultura e beijou seus lábios endurecidos. Aos poucos, foi sentindo que ela ganhava calor e maciez, iniciando um leve movimento como se aquela elegante estrutura de madeira ganhasse vida.

Elena abriu os olhos e sorriu. Guilherme retribuiu encantado com a exuberante beleza da jovem com a papoula amarela brilhante na sua orelha esquerda em torno dos cabelos ondulados. Ela pega a mão de Guilherme e caminharam juntos em direção ao rio. Os dois avançaram enlaçados e embriagados de amor deixando a água subir pelas pernas e troncos como se encobrisse a intimidade sensual e amorosa do casal.

Na margem do rio, as pessoas observavam Guilherme entrando no rio e desaparecendo pouco a pouco na medida em que avançava para o fundo. Depois de alguns minutos, ele desapareceu nas águas turbulentas do rio. Seu corpo foi encontrado dois dias depois a alguns quilômetros da cidade, com um sorriso maroto nos lábios e uma flor amarela na mão. Houve uma comoção na cidade, principalmente nas ruas pelas quais ele descia com a bicicleta e entre os frequentadores da margem do rio onde estava a figueira e a escultura de Elena. Nas cercas vivas, as papoulas murcharam. No dia seguinte, o corpo de Guilherme foi levado para a figueira e enterrado ao lado da escultura de Elena, que continuava imóvel e impassível, mais enrijecida que nunca, sentindo a falta das flores diárias que embelezavam seus cabelos.