Clemente Rosas

Há quatro anos, por comentário do meu amigo W. J. Solha, tive notícia de Marília Arnaud, nossa conterrânea, contista já consagrada, que estreava no romance com o seu “Suíte de Silêncios”.  Li o livro, e tão deslumbrado fiquei, que lhe escrevi uma carta, colocando-a, com vantagem, ao lado de Clarice Linspector, monstro sagrado da literatura nacional.  Mesmo para mim, que não tenho entusiasmo pelo tipo de romance dito intimista, o texto dela parece trabalho de ourivesaria: não há uma frase menos cuidada, mal concebida, que não traga em si o seu próprio encanto.  E ela vence o desafio de abordar cenas de sexo sem cair na vulgaridade, tão frequente na moderna ficção brasileira.

Agora tomei conhecimento de “Liturgia do Fim”, sua segunda experiência na ficção longa.  E me descobri ajudado, para este registro da minha admiração, por algumas das palavras constantes das orelhas do livro, de autoria da escritora Maria Valéria Rezende: “…uma estonteante riqueza e beleza de forma e vocabulário, que escapa de maneira brilhante de uma das armadilhas que ameaçam boa parte de nossa literatura, o achatamento e encurtamento de nossa extensa e preciosa língua, em nome de uma suposta oralidade…”  E escapa também, acrescento, de outra arapuca, que é o apelo ao chulo e ao pornográfico, onde cai, por exemplo, certa atriz consagrada, de boa estirpe, ao aventurar-se como ficcionista.  Sobre o livro desta, posso dizer, parafraseando o título do outro, que trata de vários fins mundanos, sem nenhuma liturgia.

Mas posso observar ainda que o novo romance de Marília tem mais um encanto a merecer louvor.   Tratando-se de história passada, em boa parte, no interior nordestino, há nele a agradável presença da paisagem sertaneja, seja urbana ou rural: “mercearias cheirando a aguardente e rapadura”, “praças sombreadas por oitizeiros e veladas por heróis de bronze”, “aveloses e pés de tamarindo”, “a floração lanosa das barrigudas”, “o debrum alaranjado do sol se pondo por trás das serras”, “a cambraia branca do céu”.  Referir a paina como lã de barriguda, que é como o povo aqui a conhece, é de uma deliciosa nordestinidade.  Embora o enredo, envolvendo incestos, loucura e suicídio, que só se revelam plenamente nas últimas páginas, seja um tanto chocante, e me pareça ter um certo grau de irrealismo, a beleza da linguagem, a densidade psicológica e a “força dos personagens” (a expressão é de Ariano Suassuna) são bastantes para definir a qualidade da obra.

Volto agora à minha comparação inicial entre Marília e Clarice Linspector.  Não sou daqueles que, segundo a fábula, fingem ver a roupa especial do rei – neste caso, da rainha – para não parecerem ignorantes.  Prefiro correr o risco de ser considerado míope a exaltar virtudes que não encontro, como, creio, fazem muitos dos que louvam a renomada escritora.  Para retomar o assunto, revisitei um dos dois livros que conheço dela: “A Maçã no Escuro”.  E – sorte única! – encontrei entre suas páginas um recorte do Jornal do Commercio de 22.03.2011, com um trecho de entrevista de Jorge Luís Borges, em que o consagrado escritor respalda, com toda a sua autoridade, o meu pensamento.

Afirma Borges: “Quando eu era um rapaz, andava sempre à caça de novas metáforas.  Depois descobri que as metáforas realmente boas são sempre as mesmas.  Quer dizer, você compara o tempo a uma estrada, a morte ao sono, a vida ao sonho, e são estas as grandes metáforas da literatura, porque elas correspondem a algo de essencial.  Se você inventa metáforas, elas podem causar surpresa durante uma fração de segundo, mas não despertam nenhuma emoção profunda.  Se você pensar na vida como um sonho, isso é um pensamento, um pensamento que é real, ou pelo menos que a maioria dos homens tendem a pensar, não acha?  Acho que isso é melhor do que a ideia de chocar as pessoas encontrando conexões entre coisas que nunca tinham sido conectadas antes, porque não há uma conexão real entre elas, de modo que tudo vira uma espécie de malabarismo”.

É isso aí, amigos.  E o que mais vemos no livro de Clarice Linspector são as metáforas inusitadas, absurdas, a começar pelo próprio título.  Qual seria mesmo a sensação de segurar uma maçã, uma batata, ou uma bola qualquer no escuro?  Além disso, o enredo é confuso, os personagens agem sem motivações claras e reagem de forma oposta à que seria normal esperar.  A leitura se faz penosa, no esforço de descobrir os enigmas que são propostos a cada passo. Um bom exemplo pode ser encontrado logo no segundo parágrafo:  “Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro”.

Humildemente pergunto aos admiradores incondicionais da autora: que elemento de comparação pode ser estabelecido entre o sono de um homem, uma árvore e o pulo de um sapo, ainda que às claras, pois que no escuro sequer seria percebido?

Na orelha do livro de Clarice, Alceu Amoroso Lima afirma: “Ninguém escreve como ela. Ela não escreve como ninguém”.  E estou de acordo com ele.  Mas entendo que tal declaração não implica necessariamente um elogio.

Enfim, amigos, minha sugestão é a de que leiam o livro de Marília Arnaud.  Os apreciadores da boa literatura o farão devagar, como fazem os leitores de poesia, para melhor sentir a beleza do seu texto.  E os fãs de Clarice Linspector terão a oportunidade de conhecer outro valor – para mim, pelo menos, mais alto – que se alevanta.