Clemente Rosas

Getúlio Vargas, líder da Revolução de 1930.

Getúlio Vargas, líder da Revolução de 1930.

As dissenções que dilaceraram a Paraíba, por ocasião do movimento da Aliança Liberal e da Revolução de 1930, deixaram marcas profundas, que persistem até hoje.  A principal figura a reconhecer isso foi sempre Ariano Suassuna, ao afirmar, justificando seu cuidado em abordar o tema, que “essas coisas, na Paraíba, ainda são muito fortes”.  De fato, para quem teve o pai assassinado, é compreensível até a dificuldade em referir-se à capital do Estado como João Pessoa.  Todos tivemos uma herança de sangue, com os assassinatos de João Pessoa, João Dantas e João Suassuna, além do suicídio de Anayde Beiriz, e das mortes de quatro humildes praças e quatro oficiais “legalistas”, no ataque de Agildo Barata ao quartel do 22º Batalhão de Caçadores do Exército.

Para Ariano, foi uma surpresa ver-se analisado e compreendido, em seus conflitos existenciais e suas opções políticas, sem passionalismo, no meu ensaio “A Solidão de Ariano Suassuna”, pelo “neto de um secretário de João Pessoa e filho de um secretário de José Américo”.

Mas temos outros exemplos.  Meu querido amigo, o pintor Raul Córdula, apesar do engajamento da sua arte, que o faz mais próximo dos “liberais”, declara-se “perrepista”.  E o poeta e cronista Otávio Sitônio, neto de José Pereira Lima, ao assumir sua cadeira na Academia Paraibana de Letras, proclamou-se combatente do “Estado Livre de Princesa”.  (Foi também Otávio Sitônio quem, ao final de uma noitada boêmia, apresentou-se ao bispo Dom José Maria Pires, como voluntário para missões de evangelização na África.  Ante as ponderações de “Dom Pelé” sobre a inconveniência de uma decisão tão importante àquela hora, respondeu que o serviço de Deus não podia esperar. Mas esta é história já contada pelo memorialista Cláudio Lopes Rodrigues, que apenas reproduzo aqui).

Digo essas coisas como preliminar ao meu relato, pois não quero melindrar ninguém, nem provocar contestações, a propósito de acontecimentos distantes de quase um século.  O causo me foi contado pelo meu pai, que o ouviu de meu avô.  Alguma imprecisão nas falas reproduzidas, por não terem registro escrito, pode ser relevada.

Uma das virtudes do Presidente João Pessoa, que nem mesmo seus adversários mais ferrenhos podem negar, foi a da coragem.  Era o que o popularizava, e lhe conferia autoridade junto às massas urbanas da capital, embora irritasse boa parte do patriciado.  O escritor maranhense Humberto de Campos, da Academia Brasileira de Letras, passando pela Paraíba de navio, a caminho da sua terra, deixou testemunho disso em uma crônica.  Ao receber visitas de alguns proprietários rurais, soube de um discurso do Presidente recém-eleito, ameaçando punir quem acoitasse cangaceiros – e falava para vários coiteiros.  Humberto de Campos fez então o prognóstico sombrio de um desfecho trágico para um chefe do Executivo que não tinha espírito de conciliação para fazer política, e criava inimizades.

Mas o fato é que o respeito pelo presidente da Paraíba chegava até o interior das cadeias.  Num tempo em que não havia regras explícitas para a liberação de sentenciados, em ocasiões especiais, ele permitia que fossem passar festas em suas casas, no interior, com o compromisso de se reapresentarem.  E eles voltavam: eram criminosos de sangue, matadores por questões de honra ou de terras, para quem o roubo ou a traição constituíam motivos de vergonha.

Era comum que, vigiados por guardas, prestassem serviços nas ruas, consertando buracos no pavimento de paralelepípedos.  E tiveram a ideia de pedir permissão ao presidente para usar no pescoço os lenços vermelhos representativos da Aliança Liberal.  Resposta de João Pessoa:

– Podem usar lenços da cor que quiserem: vermelhos, azuis, verdes…

E assim foi feito.  Mas soldados do 22º Batalhão de Caçadores, patrulhando as ruas, entenderam de tomar aqueles símbolos dos Estados rebeldes: Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba.  E houve resistência e conflito.

Sabedor do incidente, João Pessoa mandou convocar ao Palácio do Governo o próprio general Lavanère Wanderley, comandante da 7ª Região Militar, que havia sido deslocado do Recife para vigiar de perto a capital do Estado contestador do poder mais alto da Velha República.  Recebeu-o na presença do seu pequeno grupo de secretários (entre eles, meu avô, Mateus Gomes Ribeiro), para que todos testemunhassem o encontro.  E sua fala foi mais ou menos esta:

Começo por preveni-lo, senhor general, de que já não tenho nenhum respeito pelo senhor Presidente da República, que arma o braço de um cangaceiro para afrontar o Governo Constituído da Paraíba. (O município de Princesa fazia limite com Pernambuco, de onde vinham as armas).  E quero informá-lo de que os prisioneiros têm minha autorização para usar seus lenços.  São quase todos assassinos, criminosos da pior espécie.  Contenha, portanto, seus soldados.  Se não o fizer, vou permitir que os presos se armem, para se defender.  E o senhor será o responsável pelo banho de sangue que houver.

Ao olhar dos nossos dias, este parece um pronunciamento temerário, quase insensato. Mas o fato é que funcionou.  Os presos voltaram a ostentar, briosamente, seus lenços vermelhos, sem serem perturbados.

O que não se pode deixar de lamentar é que, com a investida vitoriosa da Revolução, vermelho foi também o sangue do general Lavanère, e dos três oficiais que resistiram à tomada do 22 BC, pelo tenente Agildo Barata, à frente do seu pequeno pelotão de civis fardados, numa reedição, dessa vez exitosa, do episódio heroico dos “18 de Copacabana”.