Frederico Toscano

Recente produção de Norma no Teatro di San Carlo em Nápoles, Itália.

Mestre do chamado bel canto, a arte de expressar dramas intensos através do “belo canto”, o compositor italiano Vincenzo Bellini (1801-1835) seguiu e aprofundou o legado operístico de Gioacchino Rossini (1792-1868) nesse sentido. Retirou as ornamentações floreadas de árias e ensembles (cenas com vários cantores) consagradas pelo seu grande mestre e transformou a voz em algo parecido com um raio laser atravessando a escuridão. Queria ao mesmo tempo agradar ao ouvido e provocar emoções.

Para isso, trabalhava sem pressa, e compôs apenas dez óperas em seus 33 anos de vida – um terço do que Rossini compusera na mesma idade. Apesar disso, entre 1827 e 1835, “Bellini, o divino Bellini”, nas palavras de um colega, foi a estrela mais cintilante da ópera italiana, aclamado sobretudo por sua capacidade de associar melodia e poderosa expressão poética. “Quero algo que seja ao mesmo tempo uma oração, uma evocação, uma ameaça, um delírio”, disse a Felice Romani (1788-1865), seu principal libretista.

Nascido na Sicília, Bellini aprendeu música inicialmente com o pai e o avô, e aos 10 anos já compunha música litúrgica. Aos 18, foi estudar em Nápoles, onde Niccolò Zingarelli (1752-1837), compositor eminente de opera seria, o protegeu do que considerava a corruptora influência vanguardista de Rossini. Mas, na prática, Bellini tinha tanto Rossini quanto Mozart como modelos, mas levou em consideração a recomendação do velho professor num aspecto: “O público quer melodias, melodias, sempre melodias”, repetia-lhe Zingarelli. Diz a lenda que, anos depois, Zingarelli chorou quando assistiu a Il pirata, a ópera que fez o nome de Bellini.

O primeiro grande passo de Bellini, contudo, ocorrera dois anos antes, em 1825, quando foi o estudante escolhido para compor uma ópera, Adelson e Salvini, para o Teatro di San Carlo em Nápoles. Foi também lá que estreou sua ópera seguinte, Bianca e Fernando, levando o Teatro alla Scala de Milão a encomendar Il pirata em 1827. Imediatamente foi aclamado como o herdeiro de Rossini. Os críticos observaram que ele “purificara” o bel canto, simplificando as melodias e a orquestração de tal maneira que passavam a ter como único objetivo transmitir emoção. Em seguida, vieram mais sucessos: I Capuleti e i Montecchi, La sonnambula e a monumental Norma, para muitos o ponto alto da tradição do bel canto. Em sua intensidade dramática, essas obras abriam caminho para Giuseppe Verdi (1813-1901) e Giacomo Puccini (1858-1924).

Com libreto de Felice Romani, Norma estreou no Teatro alla Scala de Milão, no dia 26 de dezembro de 1831. Nessa ópera, a mais popular de Bellini, a música reforça o drama, dando origem a uma obra profundamente comovente. O libreto de Romani empolga, mas é a partitura que confere grandeza à obra. Uma orquestração que surpreende pela simplicidade sustenta os longos e complexos ensembles, assim como árias de grande riqueza melódica, em especial a pungente “Casta diva”. O papel de Norma é particularmente difícil, exigindo uma soprano coloratura de voz de grande força, extensão, resistência e virtuosismo, além de talento trágico. Sua estreia foi sabotada por amigos de um compositor rival, Giovanni Pacini (1796-1867), levando Bellini a lamentar o “fiasco, completo fiasco”. Em poucos anos, contudo, Norma conquistou a Europa.

A ópera se passa por volta de 50 a.C. numa floresta sagrada no antigo território da Gália, conquistado por Júlio César e ocupado pelos romanos. Numa floresta sagrada, o chefe druida e seus seguidores esperam que a grã-sacerdotisa Norma lidere uma revolta contra os romanos invasores. Ali perto, o procônsul romano Pollione, pai dos dois filhos que Norma teve secretamente, revela amar outra sacerdotisa, Adalgisa, mas teme a ira de Norma. À espera de uma revolta, ele ouve Norma proclamar que só os deuses decidirão o momento. Os druidas veem nela uma deusa casta, ao passo que ela espera recuperar o amor de Pollione:

Enquanto os druidas se dispersam, Adalgisa se sente culpada por trair o voto de castidade. Quando Pollione reitera seu amor, ela o rejeita. Ele a convida a ir para Roma. De início, ela recusa, mas acaba cedendo. Em casa, Norma se dilacera entre o amor e o ódio pelos filhos. Adalgisa chega e confessa estar apaixonada. Norma é solidária, pois ela própria quebrara o voto de castidade. Quando Adalgisa relata como foi conquistada, Norma lembra de Pollione usando as mesmas palavras. Norma pergunta o nome dele, e Adalgisa aponta Pollione ao vê-lo surgir. Voltando-se furiosa para Pollione, Norma diz a Adalgisa que ela foi enganada. Adalgisa compreende que tomou o amante de Norma e decide rechaçá-lo.

Contemplando os filhos adormecidos, Norma imagina que melhor seria que estivessem mortos, mas recua. Chama Adalgisa, exige obediência, e revela sua decisão de morrer, dizendo-lhe cuide de seus filhos em Roma. Mas Adalgisa recusa-se a deixar a Gália e promete reavivar o amor de Pollione por Norma:

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Na floresta sagrada, Oroveso, o chefe dos druidas e pai de Norma, diz aos seus guerreiros que um comandante pior do que Pollione está para chegar, mas que Norma quer que seu exército seja dispersado. Ao saber que Pollione jurou raptar Adalgisa, Norma convoca os guerreiros à batalha. Enquanto isso, um romano é preso violando o claustro sagrado das virgens. Quando Pollione é trazido, Norma ignora os gritos para que seja morto, ordenando que parta sem Adalgisa para nunca mais voltar. Pollione prefere morrer, mas Norma decide que Adalgisa será sacrificada em seu lugar.

Pollione implora pela vida de Adalgisa e pede o punhal de Norma para se matar. Norma muda de ideia e anuncia então que outra vítima será sacrificada. “Fala, e diz o seu nome!”, clamam os druidas. Ao ser preparada a pira que queimará a vítima, Norma revela ser ela própria a traidora que deve morrer. Com remorso, Pollione quer agora morrer com ela. Os druidas ficam chocados com a notícia da relação impura de Norma, tida como casta, com um romano, o inimigo, mas ela implora ao pai que proteja seus filhos. Os druidas exigem seu sacrifício. Pollione se dispõe a morrer com ela e os dois juntos sobem em direção à pira, encerrando a ópera:

Líder religiosa e política, mãe e mulher enamorada, ao mesmo tempo ciumenta e piedosa, Norma é um dos grandes retratos de mulher de toda a história da ópera. Dentre as muitas heroínas do bel canto resgatadas pela lendária soprano Maria Callas (1923-1977), nenhuma se adequava tão perfeitamente quanto Norma a sua voz poderosa e a sua personalidade frágil. À medida que sua própria vida se tornava mais trágica, ela vivia o papel com maior paixão. “Podemos ver coisas extraordinárias no teatro ao longo da vida”, rememorava Mirto Picchi (1915-1980), seu primeiro Pollione, “mas o que poderia se comparar a ver Maria Callas em Norma? Como Norma, Maria levou a ópera a sua expressão máxima”.

Richard Wagner (1813-1883) nunca escondeu sua aversão à maioria das óperas italianas, opostas ao seu estilo mais teatral, mas abria exceção para Norma. Ao ouvir a obra-prima de Bellini, comentou: “Não devemos nos envergonhar de derramar uma lágrima e expressar emoção”. E complementou o compositor alemão: “Admiro a riqueza da veia melódica, capaz de expressar as paixões mais íntimas com um senso profundo de realidade. Trata-se de uma grande partitura que fala ao coração. É uma obra de gênio.” Para a montagem de Norma que dirigiu na Ópera de Riga (Letônia), em 1837, Wagner chegou a compor uma ária alternativa para Oroveso. E ficou muito ofendido quando Luigi Lablache (1794-1858), um famoso cantor da época, recusou-se a cantá-la, argumentando que a obra-prima de Bellini era intocável.

Quando um editor francês pediu a Georges Bizet (1838-1875), o compositor da célebre ópera Carmen, que reorquestrasse a Norma para a publicação, ele respondeu que era totalmente desnecessário. Em sua opinião, alterar a partitura significaria destruir uma simplicidade que era a base para a sua beleza. A orquestração de Bellini é simples, não porque ele era musicalmente inculto (há provas inequívocas de que ele conhecia muito bem a música alemã e a admirava profundamente), mas sim porque ele desejava que as vozes se destacassem livremente – é a pura arte do bel canto. Por outro lado, seus prelúdios, introduções instrumentais e aberturas possuem muita sofisticação. A abertura de Norma, em especial, surge como uma evocação magistral dos estados de espírito do drama e uma preparação eficiente para ele.

Para usar a expressão de Donald Kimbell em Italian Opera, é na música de Bellini que “uma nova sensualidade narcótica” começa a se insinuar na ópera italiana. Kimbell afirma que na “Casta diva” e no final do segundo ato de Norma, ouvimos a voz de um compositor que se delicia com as sonoridades e entra em êxtase com a forma como os sons desabrocham, algo que influenciou Wagner e a forma como ele obtém seus eletrizantes momentos de êxtase. Até o final do século XIX, Norma tinha sido ouvida em 35 países, traduzida em 19 línguas diferentes. E nunca mais saiu de cartaz.

As longas frases melódicas de Bellini, seu dom maior, não desempenham jamais um papel secundário em relação ao genial libreto de Romani, mas é como se tivessem um papel em si mesmas, como música pura. No entanto, como disse Patrick Smith em La Decima Musa: Storia del Libretto d’Opera, paradoxalmente, acentuam o efeito das próprias paixões de um modo que é absolutamente oposto não só às práticas de Verdi, mas também às de Wagner – pois em Verdi a música domina e as palavras transformam-se em sinais, enquanto em Wagner a música é um complemento das palavras.

E, por falar em Wagner, o próximo artigo traz uma de grandes óperas, a romântica Tristão e Isolda. Baseado numa lenda medieval, o texto foi escrito pelo próprio compositor e a obra é reconhecida como ápice do seu repertório, rompendo os padrões da ópera tradicional ao ser escrita no estilo Unendliche Melodie – a “melodia infinita”, em que a música nunca chega a uma sensação de repouso. O mestre alemão alimentava uma paixão proibida na época e tinha escrito a um colega: “Porque eu nunca experimentei a verdadeira felicidade no amor quero levantar um monumento ao mais belo de todos os sonhos, no qual esse amor possa ser o suficiente para satisfazer os amantes do começo ao fim”. Assim, Wagner produziu uma das mais belas simbolizações do amor da história da música. Em Tristão e Isolda, é como se a dor amorosa encontrasse na música o seu alívio.