O compositor italiano Giacomo Puccini (1858-1924) – que tinha um enorme nome de batismo (Giacomo Antonio Domenico Michele Secondo Maria Puccini) – ocupa lugar ímpar na história da ópera graças a La Bohème, pois há mais de um século essa obra, que traz a história de amor trágico entre artistas parisienses sem dinheiro, é a obra mais executada de todo o repertório operístico. Mas ela não foi um triunfo isolado de Puccini. Embora ele tenha composto apenas dez óperas em 40 anos de carreira, Tosca, Madama Butterfly e Turandot são muito apreciadas por sua beleza e paixão.
Nascido numa família de músicos da Toscana, recebeu suas primeiras lições do pai e de um tio. Mas foi uma récita da Aída de Giuseppe Verdi (1813-1901), tema de artigo anterior nesta série, que despertou sua paixão pela ópera. Anos depois, explicaria: “Deus tocou-me e disse: ‘Componha para o teatro, somente para o teatro.’” Ao entrar para o Conservatório de Milão em 1880, ele teve a sorte de ter entre os seus professores um compositor de óperas, Amilcare Ponchielli (1834-1886).
Em 1884, a primeira ópera de Puccini, Le villi, fez enorme sucesso, mas a segunda, Edgar, fracassou, levando o editor Giulio Ricordi a enviá-lo a Bayreuth, na Alemanha, para aprender o estilo de Richard Wagner (1813-1883), cuja ópera Tristão e Isolda também foi comentada nesta série. No retorno de seu estágio wagneriano, Puccini compôs Manon Lescaut, sua primeira obra a lhe trazer reconhecimento internacional. Nos 12 anos seguintes, como La Bohème, Tosca e Madama Butterfly, não teria concorrentes como sucessor de Verdi.
Comum a essas óperas é a força das melodias e de uma expressão melodramática que comove o público, às vezes até as lagrimas: em cada uma delas, uma bela heroína – Manon, Mimi, Tosca e Cio-Cio San – morre tragicamente. A realidade violenta e chocante que retratavam também as situava no movimento italiano da virada do século conhecido como Verismo. Quis o destino que tampouco faltasse dramaticidade à vida privada de Puccini. Na casa dos 20 anos, causou escândalo ao fugir com uma mulher casada, Elvira Gemignani, com quem teve um filho muito antes de se casarem, em 1904. Mesmo após a união ele flertava, e outro escândalo veio em 1908, quando uma jovem criada sua suicidou-se: ciumenta, Elvira a acusara, sem razão, de estar grávida de Puccini.
Mas há outros motivos para que ele compusesse lentamente. Rico ainda jovem, gostava de viajar e era apaixonado por carros; em 1903, um grave acidente o impediu de trabalhar por oito meses. Também hesitava na escolha dos temas, varrendo peças e livros atrás de histórias exóticas. Então envolvia-se a fundo com seus colaboradores na redação do libreto, muitas vezes incluindo personagens e cenas.
Ópera de pungente força lírica, Madama Butterfly refletia, na época, um recente interesse do Ocidente pelo Japão. O próprio Puccini estudou os costumes e as canções folclóricas japonesas, em busca de autenticidade. Mas, embora utilize alguns motivos nipônicos e imite certas melodias japonesas, a música é essencialmente italiana. É inusitado, porém, o caráter trágico com toques de crueldade. Com apenas 15 anos e já uma gueixa ao conhecer Pinkerton, Butterfly encarna um amor cuja pureza contrasta violentamente com o cinismo predatório do norte-americano. Essa inocência é transmitida no suntuoso dueto que encerra o Ato I, o esperançoso “um belo dia…”, e mesmo na despedida do filho. Puccini considerava a sua ópera mais “profundamente sentida e imaginosa”.
O mal-entendido cultural que está na origem de Madama Butterfly teve início com a decisão americana de forçar o fim do isolamento do Japão em 1854. Resultaram daí não só a gradual ocidentalização da vida japonesa, mas também as frequentes visitas de navios de guerra da Marinha americana aos portos japoneses, entre eles Nagasaki. Na virada do século, uma história de amor entre um oficial americano e uma gueixa era não só plausível, mas comum.
A ópera tem início numa colina sobre a baía de Nagasaki, no Japão, em torno do ano 1900. O casamenteiro Goro mostra ao tenente B. F. Pinkerton, da Marinha norte-americana, sua nova casa e lhe apresenta Suzuki, criada de sua futura mulher. Mas o cônsul norte-americano, Sharpless, adverte o oficial contra o casamento. Gabando-se de um amor em cada porto, Pinkerton se diz encantado com a bela noiva japonesa, que adeja “como uma borboleta”, mas acrescenta que um dia se casará com “uma noiva norte-americana de verdade”. Butterfly (Cio-Cio San) chega, radiante de felicidade, contando que tem 15 anos e se tornou gueixa devido às dificuldades enfrentadas pela família:
Enquanto os parentes chegam para o casamento, ela mostra a Pinkerton o punhal usado pelo pai para cometer haraquiri (suicídio pela honra). Após o casamento, seu tio, um sacerdote budista, a repreende por ter se tornado cristã. A família de Butterfly retira-se, chocada, e o casal por fim celebra o seu amor. Passam-se três anos e Butterfly não tem notícia de Pinkerton, mas está convencida de que ele retornará, chegando a imaginar suas primeiras palavras à “querida esposa”:
Sharpless traz uma carta de Pinkerton, mas Butterfly não permite que a leia. Ela diz a um rico pretendente, o príncipe Yamadori, que ainda está casada. Por fim, Sharpless começa a ler a carta, mas Butterfly o interrompe a todo momento. Quando ele pergunta o que ela faria se Pinkerton não voltasse, ela responde que voltaria a ser gueixa ou morreria. Ele a exorta a aceitar a proposta de Yamadori, mas ela o surpreende trazendo uma criança de olhos azuis. Antes de partir, Sharpless pergunta o nome do menino; ela diz que é Tristeza, mas passará a se chamar Alegria quando o pai voltar. O canhão anuncia a chegada de um navio e Butterfly, olhando por um telescópio, clama que é Pinkerton. Zombando da falta de fé de Suzuki, ela ordena que espalhem pétalas de rosa pela casa e põe o vestido de noiva.
Após esperar a noite inteira, Butterfly adormece na exata hora em que Pinkerton chega com Sharpless. Suzuki vê que uma mulher os acompanha, compreende ser a mulher de Pinkerton e fica arrasada, mas o casal lhe pede que convença Butterfly a entregar o filho. Perturbado ao ver as flores, Pinkerton, sempre obcecado com o “doce rosto” de Butterfly, foge. Procurando por ele, Butterfly encontra Kate, a norte-americana. Reluta, mas diz que entrega o filho se Pinkerton vier buscá-lo. Só, ela entrega uma bandeira norte-americana ao filho e se despede, apunhalando-se com o punhal do pai. No que Pinkerton reaparece, ela tomba e morre:
“Urros, gritos, gemidos, risos, risadas, os pedidos únicos e irônicos de ‘bis’, projetados para atiçar o público ainda mais; isso resume a recepção que o público do Scala concedeu ao novo trabalho do maestro Giacomo Puccini…” Assim se referiu o editor Giulio Ricordi sobre a estreia de Madame Butterfly em 17 de fevereiro de 1904 na revista Musica e musicisti, publicação bimestral especializada em música, famosíssima na Itália no início do século XX. Foi um desastre, um fiasco.
Empolgado com o trabalho, Puccini chegou para acompanhar os ensaios pouco mais de um mês antes da estreia. Deu tudo errado. Os cantores tiveram pouco tempo para decorar o texto do libreto, não houve apresentações abertas à imprensa, praxe na época, e, por fim, ao contrário das outras estreias, em que sempre convencia a família a não comparecer, dessa vez Puccini fez questão da presença das irmãs e do filho, que ficou com ele nos bastidores até minutos antes do início da ópera. Quatro meses depois, Puccini relançou Madame Butterfly, revisada, com três atos em vez dos dois originalmente apresentados em Milão. O público do Teatro Grande, em Brescia, o aplaudiu de pé.
Após Madame Butterfly, Puccini ficou furioso ao ser acusado por jovens compositores (hoje esquecidos) de compor óperas burguesas. Isso pode ter levado o sempre sensível compositor a compor sua ópera seguinte, La fanciulla del West, voltada para o público americano. Mas ela também indicava uma mudança em sua música, com maior ênfase na composição narrativa e menor preocupação com a beleza das melodias. As influências estrangeiras eram evidentes aqui, de Wagner, mas também de Claude Debussy (1862-1918), Richard Strauss (1864-1949) e Igor Stravinsky (1882-1971). Todas convergiriam na maravilhosa inventividade da última – e inacabada – ópera de Puccini, Turandot, estreada em 1926, dois anos após sua morte.
Mas, apesar do inquestionável virtuosismo de Turandot, os amantes da ópera ainda se dividem quanto à música de Puccini, uns afeitos a sua generosidade melódica, outros avessos a seu despudorado sentimentalismo. Ainda assim, seu lugar na história da ópera é garantido. Compôs mais de metade de suas óperas no séc. XX, mas era no fundo um compositor do séc. XIX – um brilhante fecho para três séculos de domínio italiano na ópera.
No último artigo desta série, voltamos ao mundo da ópera alemã com a polêmica Salomé de Richard Strauss, e aqui um esclarecimento sobre uma dúvida comum: apesar dos sobrenomes iguais, não existe nenhum grau de parentesco entre ele e Johann Strauss II (1825-1899), autor de célebres valsas, como O Danúbio Azul. Salomé é considerada a primeira ópera moderna. É a terceira ópera de Strauss, e pode-se dizer que foi uma sucessão de escândalos. Até então, Strauss era conhecido como compositor de peças sinfônicas, e suas duas primeiras óperas haviam fracassado. Mas o sucesso de Salomé foi tão grande que, com os rendimentos desta ópera, o compositor pôde comprar a casa na qual residiria até o fim de seus dias. Logo após a estreia, o maestro e compositor Gustav Mahler (1860-1911) tentou levar Salomé para Viena, mas foi proibida naquela capital, assim como o foi em Londres. No Metropolitan Opera de Nova York, seu conteúdo foi considerado forte demais para o público norte-americano, e lá também foi proibida. Em Salzburg, a ópera também foi proibida por iniciativa do arcebispo da cidade até 1929, quando o célebre maestro Herbert von Karajan (1908-1989) teve a coragem de desafiar a proibição. Até hoje Salomé choca plateias pelo mundo afora.
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