Helga Hoffmann

Em retrospecto, os anos noventa do século passado foram de debate das relações entre comércio internacional e políticas de proteção ambiental.  Na esteira da Rio92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento celebrada no Rio de Janeiro em 1992, que consagrou o conceito de “desenvolvimento sustentável” e aprovou a Agenda 21.[1] Ao rever arquivos e papelada para abrir espaço na estante consegui meio metro ocupado com documentos da ONU e suas agências, exclusivamente sobre o tema “comércio e meio ambiente” e suas ramificações.

Quantas pessoas terão lido essa documentação? Poucas. E, no entanto, a percepção geral da opinião pública e dos funcionários de governo em geral mudou de lá para cá, donde concluir que alguma influência teve aquela papelada de reuniões que para a ONU sempre foi difícil armazenar.[2]

Em retrospecto, também, quanta duplicação nas reuniões internacionais e nos relatórios e documentos que ora prepararam ora concluíram tais reuniões! E como é trabalhoso formar consensos, mesmo os de mínimo denominador comum! Alguns acharão que o produto de reuniões mil (inclusive noite adentro) forma um labirinto em que qualquer tema desaparece.[3] E, no entanto, hoje a consciência ambiental integrou-se à cultura, em sentido lato.

A produção mais volumosa parece ter sido da UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development, uma das agências da ONU sediada em Genebra, que explicitamente tem como foco o interesse dos países em desenvolvimento. Talvez seja porque no início as políticas de proteção ao meio ambiente foram percebidas como exigência de países desenvolvidos que poderia prejudicar as exportações dos países em desenvolvimento. E essa percepção nem poderia ser considerada paranoia, pois a política agrícola europeia, de subsídio à produção local (a título de segurança alimentar e manutenção da paisagem campestre, e mais tarde claramente com argumento ambiental) sempre discriminou as exportações agrícolas oriundas nos países em desenvolvimento, inclusive Brasil. E houve embargos comerciais famosos dos Estados Unidos alegadamente ambientais que contrariavam regras de livre comércio da Organização Mundial do Comércio.[4]

UNCTAD organizou até “Brainstorming sobre Comércio e Meio Ambiente” com entidades que cuidavam da ISO, da OMS (no caso, de regras sanitárias e certificação segundo o Codex Alimentarius), e outros defensores da certificação e da embalagem ecológica, incluídas algumas ONGs. A UNCTAD criou um “Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre Comércio, Meio Ambiente e Desenvolvimento” que teve sua primeira sessão em Genebra em dezembro de 1994. Esse grupo se reuniu por anos, ao menos até 1997, e publicou dezenas de relatórios, conceituais e empíricos, sobre ramificações do tema geral de “comércio e meio ambiente”: impacto de políticas nacionais, padrões, e regulamentos ambientais sobre o comércio internacional e o acesso a mercados; revisão de estudos empíricos do debate político sobre comércio e meio ambiente; programas de eco-etiquetagem; certificação de produtos ecologicamente benignos e suas oportunidades de mercado.  Havia dificuldade em acordar critérios para definir quando um produto é “bom para o meio ambiente”. Se um produto final era difícil de etiquetar, mais complicado era definir critérios para fiscalizar e certificar produtos segundo o processo produtivo e o impacto ambiental desse processo produtivo desde a produção dos insumos. E havia toda a área da cooperação internacional e da velha questão da transferência de tecnologia, que agora passava a incluir a tecnologia ambiental. Todos estes temas não eram parte da discussão sobre desenvolvimento nas décadas anteriores.

O grupo de trabalho tinha representantes de mais de 60 países, de diferentes níveis de desenvolvimento e, durante e depois das sessões, também se distribuíam as cópias dos discursos desses diplomatas em cada reunião. Além disso, distribuíam-se os discursos de representantes dos órgãos convidados, como FAO, GATT, OCDE, UNEP, ISO e da própria UNCTAD e do Departamento de Cooperação Econômica Internacional do Secretariado. E, é claro, havia o sumário oficial dos debates, obrigação regimental do eleito para presidir os trabalhos (“Chairman’s Summary”), incluindo resumo do discurso de cada representante nacional.

Ainda estávamos na época em que os países em desenvolvimento pediam para si regras mais “benevolentes”, segundo a tese de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”.  Muitos países ainda insistiam que a certificação ambiental podia servir de barreira não tarifária à importação de certos produtos.  Já outros consideravam que, ao contrário, podia criar novos mercados ao permitir que os consumidores e compradores levassem em conta o fator ambiental. Ainda outros defendiam a superioridade de fibras naturais sobre sintéticas no cuidado com o meio ambiente (tese da FAO, entre outras), que assim deveriam receber certificação ambiental que ajudasse no acesso a mercados.

Outra discussão acalorada foi provocada por acusações de que países desenvolvidos estariam transferindo para os países em desenvolvimento suas indústrias mais poluidoras. UNCTAD e PNUMA, entre outros, fizeram estudos sobre isso, pois na base do argumento estava a ideia de que nos países em desenvolvimento as políticas ambientais eram mais tolerantes e atraiam indústrias poluidoras. Essa “especialização em indústrias poluidoras” por causa da relocalização de transnacionais não chegou a ser comprovada como tendência geral. Além de que leis de proteção ambiental foram se estendendo aos países em desenvolvimento. De qualquer modo não é fácil classificar as indústrias e seus produtos segundo o seu grau de poluição, inclusive porque isso exige uma “análise do ciclo de vida” do produto, desde os seus insumos até sua destinação final. Pouco a pouco foram se acordando protocolos para processos de certificação os mais variados. Nossas empresas exportadoras que o digam.

Logo o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a agência propriamente ambiental da ONU, também passou a organizar reuniões sobre comércio e meio ambiente.  Algumas vezes em conjunto com UNCTAD ou as Comissões Regionais da ONU. Curiosamente, enfatizou antes que outros a necessidade de o setor financeiro “internalizar custos e benefícios ambientais” e patrocinou reuniões e relatórios sobre isso. À primeira vista difícil de saber exatamente do que se tratava. Mais tarde ficou claro como o custo, para as seguradoras, de prover seguro para, e lidar com, catástrofes ambientais, como os furacões e inundações. Quando o tema começou a ser tratado, no início dos 1990s, já se falava nos negócios de seguros, mas pretendia-se que também os bancos incluíssem as “melhores práticas” ambientais nos critérios para a concessão de crédito. Ainda não havia tanta ênfase em mudança climática em sua relação com os seguros contra eventos catastróficos.

Um pouco depois também a UNCTAD tratou de incluir o cuidado com o meio ambiente no setor serviços, mas de uma forma muito ampla, não só de serviços relacionados ao fornecimento de água e luz, poluição do ar, disposição de resíduos, transporte, mas também com a preocupação de preservar os “serviços” que, em certo sentido, a natureza oferece, como água, ar, biodiversidade, florestas. E continuou, mais tarde, com estudos sobre o impacto dos regulamentos ambientais sobre os investimentos.

Todas essas atividades aparecem de novo quando a UNCTAD faz o relatório regulamentar sobre suas ações em favor do “desenvolvimento sustentável” ao “Trade and Development Board”, que é a sua própria assembleia de governos. A quantidade de relatórios já passa de qualquer capacidade de absorção de um leitor. A geração de relatórios se multiplica automaticamente porque todas essas atividades têm que ser o objeto de relatórios às Comissões correspondentes da Assembleia Geral, que se reúnem todo ano, a ECOSOC (Economic and Social Commission) e a Comissão de Desenvolvimento Sustentável.[5] Ali aparece como “Relatório do Secretário-Geral” (da ONU). Esses relatórios derivam de solicitações da Assembleia Geral.  Os funcionários do Secretariado sabem que, tome ou não alguma decisão sobre algum tema, a Assembleia Geral pede um novo relatório. É óbvio que “Comércio e Meio Ambiente” passou a ser incluído também entre os temas abordados no World Economic Survey, o mais abrangente de todos os relatórios de responsabilidade do Secretário Geral da ONU.

Alguns desses relatórios até constituem um resumo ampliado e interessante de algum problema mundial. E vale lembrar que a papelada inclui estudos de especialistas contratados pelo Secretariado da ONU em circunstâncias especiais, quando profissionais no Secretariado não dão conta de um tema ou preferem um parecer mais especializado. Serviu de insumo nos debates, indiretamente, a imensa produção acadêmica sobre o tema, fora estudos de consultores, contratados por organizações internacionais privadas e por verbas de “cooperação para o desenvolvimento” de vários governos. E havia ainda documentos de ONGs, pequenas ou gigantes internacionais, que agressivamente tratavam de participar das reuniões.

Na UNCTAD o tema “comércio e meio ambiente” se espalhou para todas as suas áreas tradicionais de trabalho.  Passou às análises sobre “commodities” e como seus preços deveriam refletir “custos ambientais”. Com seu trabalho, a organização pretendia influenciar os governos e o público, mas também os outros organismos internacionais, em particular a OMC, a OCDE e a Comissão de Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Geral da ONU. Não havia essa pretensão com referência ao Banco Mundial, pois na imensa produção de estudos sobre “desenvolvimento sustentável” do Banco o foco não estava em comércio internacional, e sim, na questão do financiamento do desenvolvimento.

A OMC (Organização Mundial do Comércio, criada em janeiro de 1995 como sucessora do GATT) estabeleceu um “Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente”, cujo trabalho estendeu-se por anos e se concentrou na compatibilização entre acordos comerciais e acordos multilaterais ambientais.  Também tratou a questão da certificação ambiental de produtos no comércio internacional, e a relação dessa certificação com os acordos sobre barreiras técnicas ao comércio.  Parte do trabalho era lembrar aos ambientalistas, aqueles que queriam usar regras de comércio internacional para fazer cumprir regulamentação ambiental, que a função precípua da OMC é trabalhar por consensos que eliminem barreiras ao comércio internacional e levem à sua expansão. A competência da OMC para a coordenação de políticas nessa área limitava-se ao comércio. Não havia a intenção, por parte dos governos ali reunidos, de transformar a OMC em agência ambiental. A OMC não deveria envolver-se com prioridades ambientais de cada nação, estabelecendo padrões ambientais ou desenvolvendo políticas globais para o meio ambiente.  Esta seria responsabilidade de outras organizações mais bem equipadas para a tarefa, no âmbito dos vários acordos multilaterais ambientais.

UNCTAD talvez quisesse também influenciar o PNUMA, em defesa do comércio internacional. Assim, além de seu próprio Grupo Ad Hoc sobre Comércio e Meio Ambiente, a UNCTAD tinha mais um grupo sobre o mesmo tema em conjunto com o PNUMA, cujas conclusões se apresentavam à Comissão de Desenvolvimento Sustentável. Sintomático das pressões dos ambientalistas, em especial das ONGs mais agressivas, é o fato de que Carlos Fortin, quando foi Secretário Geral em exercício da UNCTAD, em 1995, em uma das reuniões conjuntas tivesse que recordar que “qualquer atividade econômica tem algum impacto sobre o meio ambiente: a questão é minimizá-lo”. Mais para o fim da década, o balanço dos temas já havia se modificado ligeiramente. Agora o tema era como perseguir dois objetivos gêmeos: a liberalização do comércio e a proteção ambiental. Já não se via como um necessariamente atrapalhando o outro. As questões principais agora eram: a)como políticas comerciais têm que mudar para incorporar preocupações ambientais, e b)impacto de vários acordos internacionais sobre o meio ambiente. E assim as duas agências passaram a levar em conta os trabalhos da OMC, mas, ironicamente, toda essa negociação das novas regras passou a ser feita nos mega-acordos regionais.

[1] O mandato das organizações internacionais nessa área vem do Princípio 12 da Declaração final da Cúpula do Rio de Janeiro de 1992, que tem boa dose de ambiguidade: “Os Estados devem cooperar na promoção de um sistema econômico internacional favorável e aberto que leve ao crescimento econômico e desenvolvimento sustentável de todos os países, a fim de abordar da melhor forma os problemas da degradação ambiental. As medidas de política comercial com fins ambientais não deveriam constituir um meio de discriminação arbitrária ou injustificada nem uma restrição velada do comércio internacional. Deveriam ser evitadas medidas unilaterais para solucionar os problemas ambientais que se produzam fora da jurisdição do país importador. As medidas destinadas a tratar os problemas ambientais transfronteira ou mundiais deveriam, na medida do possível, basear-se em um consenso internacional.”

[2] Houve um momento em que Secretário Geral estabeleceu um limite de 24 páginas para qualquer “Relatório do Secretário-Geral”.

[3] De qualquer modo, um bom domínio linguístico é importante para chegar a um consenso. Um colega importante na hierarquia da ONU comentou uma vez, irônico, que uma boa dose de ofuscação linguística é necessária para redigir um consenso ao final de uma reunião. É verdade, sim, que às vezes há discussões entre representantes de países sobre a colocação de vírgulas em uma declaração conjunta.

[4] Também contribuí para a papelada, contra o uso da OMC como agência ambiental: Helga Hoffmann, “Trade and environment: green light or red light?”, CEPAL Review, United Nations Publication, August 1997 (ISSN 0251-2910).

[5] A CDS foi criada por decisão da Conferência do Rio de Janeiro para examinar o progresso na implementação da Agenda 21, ou seja, sua abrangência é tamanha que qualquer decisão prática é quase impossível. Como registrado em Helga Hoffmann, “Tudo o que existe sob o sol e mais além: rumo à ECO 2002” in Política Externa, vol.11 no. 1, jul-ago2002.