Fernando Dourado

Gion, Japão.

Atenas – Quem conhece Atenas, Grécia, associa a região da Plaka às galerias de arte e às tavernas que se espalham pelos terraços ornados de rosas brancas. Nos canteiros floridos, gatos preguiçosos contemplam turistas com indiferença. Pois bem, 40 anos atrás, já existia tudo isso, mas o ambiente era menos asséptico. Garçons descartavam o lixo a céu aberto, o casario era desdentado, embora a Acrópole mantivesse a majestade milenar. Mexendo numa velha caixa de fotos, localizei um irlandês baixinho, de sotaque ininteligível, com quem tomei umas cervejas ali mesmo. Ambos estávamos acompanhados (eu melhor do que ele, é bom que se diga), a conversa foi divertida, ele gostava muito de música e adorou meus óculos de sol. A ponto tal que eu os dei de presente. Hoje acordei juntando as pontas. Terá sido Bono? Será que sou o pai da moda que ele nunca abandonou?

Bad-Bellingen – Ano passado, por volta do fim do outono, estava em Bad-Bellingen, Alemanha. Depois de uma semana por lá, fiquei mais uns dias em Estrasburgo, espécie de segunda casa, de onde saí para trabalhar antes do Natal na Itália e na Turquia. Passei as festas na Polônia, de onde voltei para a França, via República Tcheca, com direito a uma esticada a Portugal. Desde 1992, o programa natalino é mais ou menos assim, em algum lugar frio, salvo por 3 anos em que passei o Ano Novo no Brasil. Pois bem, quando se prenuncia a possibilidade de não viajar, o que pode ser o caso de 2018-19, a angústia me assalta. Sinto falta do inverno e do cheiro das castanhas assadas nas calçadas do Velho Mundo. Mas a vida é também feita de sacrifícios e não dá para dizer sim a tudo. Queria voltar a Bad-Bellingen, na Floresta Negra, e dar as mesmas caminhadas vespertinas depois de horas na grande piscina térmica.

Cracóvia – Logo cedo, fui à rodoviária. Ainda fazia noite. Ela fica a quinze minutos da Cidade Velha e margeei a muralha medieval que embeleza a mais vistosa das cidades grandes da Polônia. Atravessei o gramado nevado, escapei de dois escorregões perigosos, e, atento aos mal-encarados, comprei a passagem para Praga. Sairei amanhã às 11 horas e só chegarei à capital tcheca tarde da noite. Não sabia que o ônibus seria tão lento, mas me informaram que é devido às montanhas e, provavelmente, à neve fresca que vai cair, quando a temperatura descer a -12°. À noite, fui ao bar e tomei um conhaque enquanto viajava nas pequenas coisas. À direita, imperava o vermelho das plantas, e da vestimenta de uma senhora sólida que comia com apetite. Ocorreu-me que sou um andarilho sem paradeiro que só se sente bem entre rodoviárias, espremido em ônibus desconfortáveis.

Damasco – Em 1978, eu caminhava pelo centro de Damasco, a bela capital síria, quando vi um ônibus com a bandeira brasileira. Não era época propícia para proximidade com delegações oficias. Mesmo assim, cheguei perto quando percebi que se tratava da Seleção de Futebol Sub-20 que excursionava pelo Oriente-Médio. Entre uma conversa e outra com os cartolas da então CBD, surgiu aquela simpatia mútua que une brasileiros mundo afora. Ora, 40 anos atrás, a Síria era um ponto remoto no mapa. Foi assim que quebraram-se as regras e assisti ao jogo da Seleção no banco de reservas, ao lado dos atletas, da comissão técnica e dos dirigentes. Na foto que achei esta manhã, estou à beira do gramado com o Chefe da Delegação, minutos antes do início da partida. Sem a imagem comprobatória, lá ia eu passar por delirante e megalomaníaco.

Etiópia – Se você é judeu praticante, talvez goste da ideia de rezar em plena África subsaariana. O templo de que vou falar não tem a imponência dos similares em Vilnius, Kiev, Praga ou Budapeste. Não chega sequer a ser um schul, mas o que vale é a intenção. Terra dos falachas, ou judeus negros, Adis Abeda é o centro irradiador dessa cultura de tribo perdida. Como sabido, eles preferem ser denominados de Beta Israele diversificam a paisagem humana do país de adoção, clivada entre asquenazitas e sefarditas. Aqui na Etiópia, um cantinho do saguão principal do aeroporto é reservado à oração, bem em frente a uma área similar dedicada aos muçulmanos. Com livro de reza, kipáe talit, o visitante terá como orar. Nas salas de espera, ouve-se muito o hebraico contemporâneo e a comunidade de negócios israelense é representativa aqui.

Finlândia – Estou ao pé da lareira. No céu, brechas azuis são bom prenúncio para os clarões da aurora boreal, pelo que me diz o amigo Tomi. O luar força passagem por trás das nuvens que correm a grande velocidade. A temperatura de -10° de Saariselkä é agradável e convidativa a uma sauna, antes dos excessos invariáveis à mesa. Como ainda faltam sete horas para o réveillon, preparei torradas de pão preto com queijo báltico, e outras com salmão silvestre. Assim fica mais fácil apreciar a beleza dessa paisagem comovente e única. Será minha terceira passagem de ano na Finlândia em 10 anos, uma raridade para quem abomina repetir programas. Convenhamos, algo de muito especial essa terra tem. Além da beleza natural, admiro o povo e o senso de sisu, palavra intraduzível que significa coragem, valentia e persistência.

Gion –  Jantei no Kikunoi Honten, um 3 estrelas Michelin, em Kyoto. Não sou homem de 3 estrelas Michelin de forma geral. Aprendi que boa comida demanda mais do que tudo bons ingredientes, simplicidade para não mascarar os sabores e excelência de execução. Sem que isso nos obrigue a ter que ligar para o banco para baixar a aplicação financeira por causa da conta estratosférica. Mas gostei do Kikunoi. Éramos 3 e comemos o kaiseki de 14 pratos e bebemos bom saquê. No final, a conta saiu por U$ 600, o que foi perfeitamente sensato, levando em conta que lá ficamos durante quase 4 horas, sentados num reservado elegantíssimo, servidos por duas atendentes que pareciam adivinhar nossos pensamentos. Lembro das lâminas de chu-torô, do ouriço fresquíssimo, das vieiras sumarentas, do abalone, da sopa de tartaruga, enfim, da experiência multi-sensorial de um lugar lindo, tido como um dos 50 melhores restaurantes do mundo. Já à porta, o casal de proprietários veio se despedir. Famosos mundialmente, convivas de reis e plutocratas, a senhora fez questão de nos presentear com um livro da casa, uma joia que até hoje folheio com renovado prazer. Na tradição tatemae nipônica, disseram que estavam honrados com nossa presença. E que era uma distinção receber gente que veio do outro lado do mundo para honrar sua “modesta” cozinha. Mas em Kyoto, em Gion em especial, o céu é o limite e o visitante vai se deparar com maravilhas na mais bela cidade do Japão.

Higienópolis – Ainda hoje, anos depois, sempre que vejo um avião fora de rota, mesmo que voe a altitude elevada sobre centros concorridos, entro em alerta. É um condicionamento. Se sou passageiro e detecto a mínima não-conformidade de procedimento – mudança de nível de cruzeiro, inclinação sobre a asa, alteração brusca do ronco dos reatores -, fico esperto. Embora nada possa fazer, sempre formulo hipóteses. Ontem vi um grande avião em trajetória atípica sobre os prédios da Faria Lima. Em tempo: eu não estava em Manhattan no 11 de setembro. Estava em São Paulo, mas dei meia-volta na avenida Rebouças e voltei para casa, em Higienópólis, para de lá ver o “fim do mundo” com D. Celina, então minha fiel escudeira. Que, aliás, sequer diante do Apocalipse anunciado pelo pastor da igreja, aceitou sentar na poltrona. De uniforme impecável, aos 75 anos, negra e bela, ainda serviu um uísque.

Israel – Nos anos 1970, o refeitório era o centro nervoso do kibutz Ayelet HaShahar. Na hora do café da manhã, todos compareciam com fome bíblica. Voltando do campo, eu fazia uma omelete de 3 ovos com cogumelos, cebola picada e queijo ralado. Alguns sequer apareciam para o almoço e se contentavam com um sanduíche na piscina. Mas tanto nós como os kibutznikim, vestíamos roupa melhor para o jantar da sexta-feira. Rito central da vida judaica, mesmo numa comunidade laica como aquela, acendiam-se velas e cantávamos. Então, a adrenalina baixava. As perguntas se tornavam mais pessoais, o tom ficava amistoso e ninguém se apressava em ir embora. A Galileia era varrida por um halo de paz. Nas alamedas floridas, só ouvíamos Shabat Shalom. Na manhã do domingo, as pressões retomariam. Era uma vida previsível, mas também sujeita a tensões de convívio pouco aparentes.

Japão –  Meu histórico com o Japão começou em 1985. Nossos três principais parceiros foram a Nissho Iwai, a Marubeni e a Kanematsu Gosho. Depois abri frentes com empresas menores, que fugissem ao padrão engessado das sogo shoshaque integravam enormeskeiretsu. Daí surgiu a Takuma Shoji e a Iwama, de Osaka, cujo presidente se tornou bom amigo. Como eu, ele era um sujeito de muito trabalho, mas insuperável numa noitada. Quando surgiu a perspectiva da Citrovita, em 1986, comecei a alargar o leque para escolher o melhor dentre todos. Daí vieram a Sumitomo e a Mitsui. Minha meta era fidelizar um parceiro forte que nos adiantasse dinheiro para comprar laranja, única forma de fazermos face ao colosso da Cutrale e da Citrosuco, diante da desregulamentação do mercado nipônico em 1992. Mas isso ainda não era tudo. Ao cabo de uma apresentação aos acionistas, em Catanduva, Dr. Antonio Ermírio me perguntou na viagem de volta para Congonhas a razão de eu estar apostando tantas fichas nos japoneses. Então eu disse que sem eles, nós não iríamos conseguir comprar a Vale do Rio Doce. E seria mais fácil de conseguir o apoio se já tivéssemos um track recordde cooperação em diversos setores: rayon, nitrocelulose e suco concentrado de laranja. Dr. Antonio sorriu e disse que a privatização da Vale não sairia em seu tempo de vida. Eu rebati que sim. Os anos 1990 deram ensejo à entrada de uma legião de executivos que não tinham apego aos valores fundadores da área internacional a que eu dera forma em São Miguel Paulista, na CNQB: desprendimento, cosmovisão e perseverança. Resolvi sair da empresa e ajudar de fora, o que quase sempre suscita resistências internas. O resto da história é bem conhecido. A Vale foi privatizada e a Votorantim foi atrás do cheque dos japoneses. Mas então já era tarde e Benjamim Steinbruch ficara com o troféu.

Kaysersberg – Perto da fronteira franco-alemã, visitei a casa de Albert Schweitzer, cuja biografia li na juventude. Médico e missionário, viveu muito tempo na África. No afã de convencer os locais a construir um hospital, empolgava-se com o progresso das obras quando lá estava. Mas ficava decepcionado ao regressar e ver que elas tinham parado. “O que aconteceu?”. Os africanos abriam um sorriso tímido e confessavam que só se sentiam motivados a trabalhar quando ele estava presente. “Mas o hospital é para vocês”. Afeitos a outra disciplina e outra forma de lidar com o tempo, eles rebatiam: “Quando o senhor não está aqui, doutor, dá uma vontade de dormir”. Grande Schweitzer. Abandonar a natureza benevolente de Kaysersberg e optar pela África foi missão que lhe valeu um merecido prêmio Nobel. Quando na estrada, essas divagações me fazem companhia, fascinam e atormentam. O mesmo deve ter acontecido com o aclamado Anthony Bourdain que escolheu a cidadezinha para cometer o suicídio que chocou o mundo em 2018.

Lutetia – Uma amiga me mandou de Paris uma foto da floricultura situada na rue du Bac. Quando cheguei à cidade, em 1973, fui morar ali adiante, na rue de Saint Simon. Mas era na rue du Bac que pegava o metrô. Diante de casa, havia uma loja de brinquedo chamada “L´oiseau de paradis” e no café ao lado reinava uma garçonete de nome Geneviève com quem eu sonhava. No boulevard Saint-Germain, já havia o ícone de móveis Roche Bobois – não tão grande quanto hoje – e muito estrangeiro me perguntava onde era a igrejinha famosa por suas medalhas milagrosas que eu só sabia ser perto do Bon Marché, em direção a Sèvres-Babylone, quase diante do lendário hotel Lutetia. De Estrasburgo, faz bem à alma saber que um par de horas me levaria à Gare de l´Est, o que me deixaria na rue du Bac em minutos. Mas seria uma visita tola. Meu foco hoje é aqui.

Majdal Shams– Sempre que venho aqui, imagino que seja um bom lugar para viver. Nas aldeias drusas, as frutas são belas e a casca das tangerinas reluz, parecendo parafinada. O ar é seco e revigorante e os pulmões agradecem. No inverno, a montanha enquadra o horizonte. No verão, as noites são frescas e em um par de horas se chega ao mar, bordejando o Líbano. Em Majdal Shams, comentam-se os desdobramentos do cenário na Síria. Desde que visitei a região pela primeira vez, há 40 anos, alimento a fantasia de que deveria vir aqui para viver e escrever. Não sei porque associo a paisagem à inspiração, apesar de saber que isso é uma falácia, e que só a disciplina produz textos perenes, que atravessam o coração das pessoas e ali se alojam. O provável é que a paisagem do Golã fique só como uma referência de felicidade que acariciei, mas a que não me entreguei

Nievski Prospekt – Era verão na linda São Petersburgo, Rússia. O sol não se punha. Às 2 da manhã, a luz suavizava, mas às 4 ele já tinha ares de meio-dia. O blecaute de meu quarto era precário, o hotelzinho também. Mas nada disso importava. Eu caminhava o dia todo, fascinado pela beleza dos canais e pela majestade do Hermitage. Na avenida principal, aquela onde a literatura pontifica alto no coração dos escritores russos, os pintores locais mantinham uma exposição permanente, próxima ao restaurante Biblioteka. Então comecei a namorar certa tela. Nas cores molhadas, um dia de chuva em plena Nievski Prospekt, a artéria símbolo da antiga Leningrado. Fiz uma oferta. O vendedor consultou o artista ao celular e este aceitou-a. Garanti-lhe um lugar à beira mar, nos trópicos. Ele enrolou a tela e a beijou a título de boa viagem. Hoje o quadro mora no Recife e contempla o mar.

Óbidos – Que esse lugar é gracioso e quase imponente, não há dúvida. O problema é resvalar para a sensaboria das cidades que são simplesmente bonitinhas. O que é pior do que gente boazinha, convenhamos. Na rua principal, os indícios são visíveis: jarras de sangria a 5 euros; pratos de massa mole a outros 5 e pizzas de microondas para gente sem paladar. Gente que só pensa em tirar fotos de crepúsculos e postá-las enquanto comem. O fenômeno é geral. Mas é bom atentar para ele, sem se deixar atrair pelo gosto fácil, feito para agradar. Todo esse pastiche me lembra as meninas dos anos 1970 que, na falta de se impor pelo conjunto, enfeitavam-se como árvores de Natal: brinquinho, colarzinho, pulseirinha, fivelinha, brochinho e tiarinha compunham um todo anódino que só escondia o que deveria realçar. É por isso que prefiro viajar no inverno, longe dos turistas de calendário.

Porto – Você diz na estação ferroviária do Porto que quer ir a Óbidos. O espanto é total, o computador fumega, todos balançam a cabeça com ceticismo. É longe, só saindo cedinho e já passa do meio-dia. Hoje é impossível, impraticável mesmo, aduzem. Então sugiro ir a Coimbra. De lá, posso viajar de ônibus até Leiria. E desta, argumento, vou até Caldas da Rainha, logo ao lado de Óbidos, pois não? São todos trajetos de uma hora. Um senhor olhou-me intrigado: ora, se eu sabia de tudo aquilo, por que perguntara? Eu não sabia. Só que diante da paralisia, fui tateando o terreno e me guiando pelo mapa mental para evitar ter de ir até Lisboa, ora essa. E assim fiz. São engraçadas as reações. Nós, do Brasil, acostumados a grandes distâncias, a toda hora nos surpreendemos com a paralisia que os aflige com dilemas tão minúsculos. E eles mais ainda.

Quito – A primeira semana do ano é significativa para mim. Gosto de passá-la longe do Brasil, no frio, o que facilita a introspecção, refina a sensibilidade e propicia o planejamento. Pela TV, ao ver os fogos de Copacabana, mostro com orgulho o que é saber fazer um réveillon aos amigos. Felizmente, eles são educados e não perguntam: “Se é tão bom, por que vir para cá?” Seja como for, um hotelzinho simpático e a preço sensato é sempre um ingrediente suplementar de charme. Em Vilnius, gostei do Shakespeare. Por 70 euros a diária, ficamos na suíte Verona, toda ela decorada de lindos quadros e com livros nas prateleiras. A recepção é profissional e as dependências são lindas. Cá entre nós: não está na hora de dar um tempo naquelaselfieao lado de Fernando Pessoa, no Chiado? Nem ele te aguenta mais. Pois bem, troque de escritor. E de roteiro. Quem sabe Quito, à sombra do vulcão?

Riga – Na última madrugada, tive rara insônia. Teria sido pelo ajuste tardio ao fuso brasileiro? Consequência da leitura de passagens tórridas de Anna Karenina na cama? Ansiedade por estar às voltas com variáveis que não controlo? Achaques da idade? Não sei. O certo é que, a certa altura, imaginei uma cena recente que evocasse beleza e encantamento. De preferência, de que não constasse ninguém. Então puxei da memória uma imagem singela. Tratava-se de uma grande árvore desfolhada, diante do hotel em que ficara em Riga, na Letônia, dias atrás. Em torno do que seria a copa de folhas, fios iluminados enlaçavam o tronco frouxamente. Imaginei que percorria cada um dos pontinhos de luz. Pois bem, logo adormeci. Procurando uma mensagem no telefone hoje, achei a foto de que sequer lembrava. Então tudo fez sentido. Acabo de adotar a árvore como meu Stillnox em 2018.

São Paulo – Ontem já passava das 20 horas quando peguei o ônibus na Faria Lima para a região da Paulista. Na altura do Museu da Imagem e Som, embarcou um sujeito que tinha tomado uma a mais e amava cantar. Perdi a concentração na leitura e tentei entender a lógica do repertório. Cantou “Sentimental eu sou…”; “Eu sou a mosca da sopa…”; “Eu queria ser uma metamorfose ambulante…”; “Eu não sou cachorro não…” e muitas outras. Ele berrava os refrões e parava. Então, retomava. O cobrador me segredou: “É gente de primeira. Tem um carrinho de pipoca na frente do MIS. Não faz mal a uma mosca. Mas quando toma uns conhaques, fica assim”. O que podia haver no jornal de mais interessante do que ele? Enquanto me equilibrava nas freadas, concluía que não podemos perder a conexão com a rua. Ela pode ser divertida e cheia de sabedoria. No destino, quase o chamei para uma saideira. Mas ele seguiu: “Quem sonhou, só vale se já sonhou demais…”

Tirana – O que há em comum nas praças públicas de Tirana, Belgrado, Zagreb, Budapeste e Sofia? Velhos encurvados, área verde, café em pequenas xícaras e…xadrez. São centenas os enxadristas que se revezam às mesas, diante de uma nuvem de gente que acompanha cada partida com o mesmo fascínio que sentiu ao aprender a mexer as peças. Pergunto aos tantos amigos educadores a razão pela qual não o adotamos nas salas de aula brasileiras. É barato, não dá margem a desvios, exercita o cérebro e premia a aplicação. Ontem fotografei a Plaza de Armas, no centro de Santiago. Contei 50 tabuleiros e pelo menos 300 pessoas em volta, que peruavam discretamente. Sei que no Recife o dominó é uma religião e quem o joga sabe o quanto exige de cada um. Mas o xadrez pede contenção, serenidade e concentração. Desarma os espíritos para o bom combate em torno do rei alheio.

Uzbequistão – Se eu tivesse juízo, era aqui em Belmonte que viria viver o que me resta. Com vista para a Serra da Estrela, caminharia todo dia dez quilômetros. Levaria tempo para preparar uma salada da estação, conversaria amenidades com um vizinho e todo dia dedicaria pelo menos duas horas a escrever um enorme romance, uma história que cobrisse o Brasil dos últimos 50 anos, narrado por diversas vozes. À noite, dormiria cedo e levaria para a cama um daqueles livros que deixei para ler quando estivesse com o estado de espírito ideal. Na pracinha, ouviria a conversa dos turistas espanhóis que chegam de Zamora e Salamanca para visitar a sinagoga e admirar o monumento a Cabral, o descobridor do Brasil. À margem das ocas vaidades do mundo, só sairia de meu refúgio nos meses quentes. No auge do inverno, manteria a lareira acesa e a chaminé aberta. Depois do almoço, tomaria um café com os aposentados. O que me impede? O campo magnético da Ásia, o fascínio pela velha Rota da Seda, a vontade de voltar ao Uzbequistão.

Varsóvia – O ar estava claro, mas o sol logo sumiria do céu da Polônia. A temperatura ia despencar e tínhamos que andar até a entrada de Birkenau, ao longo do trilho. Apressei o passo e me ocorreu que convinha reservar mesa para acolher 2017. Pensei no menu: sopa de cogumelos, ganso assado, repolho roxo e um vinho encorpado. Foi então que paramos ao lado do vagão de gado que reinava no descampado. Estacamos ali, mudos, imaginando famílias naquela plataforma nos anos 1940. Ela sacudiu a cabeça, incrédula, como se tudo tivesse ocorrido ontem. E, lendo meus pensamentos, disse: “Amanhã não quero festa”. Então, rebati: “Os que morreram aqui brindavam à vida. Ceder à tristeza não vai ajudar. Amanhã estaremos bem”. E aceleramos o passo rumo ao carro, sabendo que o dia estava perdido. Ela nada disse até Varsóvia. Mas afinal, acolhemos com alegria e fartura a chegada de 2017.

Wilne – Os avós de Simon e Garfunkel eram de Vilnius. Os de Bob Dylan também. Wilno em polonês; Wilna em alemão; Vilna em russo; Wilne em iídiche e Vilnius em lituano. Bela cidade para fechar o passeio pelo Báltico. Também recomendo Kaunas, que já visitei em outras ocasiões. O ônibus mais uma vez proporcionou o recolhimento necessário para curtir a transição da Europa nórdica para a Europa Central. O Leste tem o encanto intacto dos dois últimos séculos, e muitas de suas cicatrizes e glórias. Nunca esqueçamos de que turistas viajam para ver coisas; viajantes o fazem para se conhecer. A experiência aqui se presta a ambos. Mas são paragens impagáveis para os últimos.


Xique-Xique –
Chegar a Lisboa até que é fácil. Difícil é sair do Recife. No balcão da TAP a atendente quer cobrar por uma peça de bagagem, ignorando que o cartão de fidelidade me exime disso. Você quer comprar os jornais, e constata que as duas revistarias estão fechadas. Você quer levar um bolo local para presente, e vê que o quiosque está desativado. No controle de segurança, três das quatro baterias de raios-X estão fechadas e 100 passageiros afunilam-se em uma só. É padrão Xique-Xique e olhe lá. O loungeé ínfimo, apinhado, abafado e pobremente sortido. No embarque, dez funcionários batem cabeça e não se entendem sobre como organizar prioridades. Mas, pasmem, depois que decola, o máximo que pode acontecer é você ser esnobado por uma tripulação comodista e autocentrada. Mas isso já está precificado.

Yerevan – Foi muito bom estar em Yerevan por ocasião da visita do Papa. Por várias razões, não foi nada banal. Ao chegar à praça, flagrei uma hesitação na segurança, fiz cara de quem não gosta de negativas, abri o passaporte e encarei o guarda. A célebre carteirada brasileira deu certo. Saí do sol forte e entrei na área reservada. De repente, grande emoção. A orquestra sinfônica tocou Spartacus, de Aram Khatchaturian. As lágrimas desceram em torrentes. Até um leão enraivecido choraria ao ouvi-la, vendo os prédios de touf. O relógio marcava quase oito da noite quando Francisco saiu das formalidades e entrou no cerne da questão que mobilizava a audiência: o Genocídio Armênio perpetrado pelos turcos. Os telões traduziam para o armênio o que ele dizia em italiano. Então, ele proferiu com clareza algo mais ou menos assim: Quella tragedia, quel Genocidio, inaugurò purtroppo il triste elenco delle immani catastrofi del secolo scorso, rese possibili da aberranti motivazioni razziali, ideologiche o religiose... Minha vizinha de palanque desmaiou e eu próprio achei que fosse morrer.


Zurique
– O outono chegou à Europa. Quando isso acontece, alguma coisa agita meu coração. Minha alma exulta só de pensar em temperaturas de um dígito e em árvores desfolhadas. Semana passada, falava com Bianca Rothier, da Globo News, em Zurique, e lhe dizia da beleza da paisagem de fundo de suas entradas no ar. Pois bem, elas estão ao cabo de dez horas do avião da Swiss que vejo no aeroporto de Guarulhos. Se pudesse, embarcaria hoje. Do aeroporto de Kloten, cuja região conheço tão bem, pegaria um trem até Radolfzell, na Alemanha, às margens do Bodensee, onde vivi os melhores meses da vida. Então tomaria um banho, enrolaria um cachecol no pescoço e sairia para um passeio até o velho Wienerwald onde pediria uma sopa de tomate, comeria uma fatia de pão preto e beberia um copo de Lambrusco, como fazia na juventude. Isso não acontecerá nem hoje nem amanhã. Mas o sonho é um bom começo.

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