Clemente Rosas

Carnaval e liberalidades

Soldado, naquele tempo, não podia sair “à paisana”, a não ser com permissão especial, e definição prévia de tempo e lugar.  Cheguei a me apresentar, fardado, em pleno salão do CEU (Clube do Estudante Universitário), prestar continência e pedir permissão a um tenente para permanecer no local.  Fui autorizado, porém, a usar traje civil para dar aulas num colégio, à noite, já nos últimos meses de minha conscrição.

Mas havia algumas liberalidades.  Nos clubes sociais, Astrea e Cabo Branco, quando um oficial adventício desejava associar-se, a direção exigia que não criasse problemas para os filhos dos sócios, nas festas.  E os militares mais graduados não se ligavam muito nisso. Tive um namorico com a filha de um general, e fui a uma festinha na sua casa.  Ela me garantiu que a alta patente não me reconheceria, ou fingiria não me conhecer. Só houve problema quando alguns jovens tenentes quiseram adentrar o recinto.  A garota e as amigas “cozinharam” os incômodos convidados até que nos retirássemos, eu e outros colegas, discretamente, pelos fundos da casa.

Mas no Carnaval a coisa era diferente: havia expressa recomendação para ninguém usar farda.  A visão de um militar envolvido em um bloco de rua, uniforme em desalinho, manchado de talco, serpentinas ao pescoço, seria insuportável para o Alto Comando.  Todos eram liberados nos três dias, apenas com um breve expediente na segunda feira, para uma pausa na cachaça.  Ficávamos somente limpando as armas.  E foi assim que, em plena euforia momesca, dei vivas ao diabo bem na frente do coronel comandante, no salão do Esporte Clube Cabo Branco.

A nossa tradição dionisíaca é forte o bastante para subverter até a disciplina militar.  Coisas do Brasil.

Depois da farda

Após dez meses de serviço, fui desmobilizado em março de 1960.  Ganhei músculos, experiência de vida em coisas práticas, sentido de disciplina, engajamento e persistência.  Mas minha atividade intelectual teve uma compreensível baixa.  Morfeu e Baco são as devoções preferenciais dos soldados, em suas folgas.

De volta à vida civil, reencontrei poucos dos amigos feitos na caserna.  O cabo Bezerra, tipo diferenciado pelo intelectualismo, com quem conversava sobre tudo, desde serpentes a literatura e política, desengajou, fez concurso para o Banco do Brasil e virou escritor.  O soldado Olegário, cantor de sambas, vi como garçom, ainda bisonho, do restaurante universitário.  Alexandrino, motorista de caminhão, de braços tão fortes que ganhou uma queda de braço para o halterofilista da companhia, reconheci, mais gordo e sujo, como todo bom caminhoneiro nordestino, em um posto de combustíveis.  Eu estava de paletó e gravata, e ele mostrou-se agradavelmente surpreendido quando o identifiquei e cumprimentei, com efusão.

Dos oficiais, lobriguei à distância, em praia paraibana, o capitão truculento.  Acho que me reconheceu, mas fingi não ter feito o mesmo, em relação a ele.  E o tenente Lira, da CCAC, vi também em praia de Pernambuco, para onde já me tinha mudado.  Também dele não me aproximei.  Nada tinha a conversar.

Mas, pelo destino caprichoso, esbarrei com o tenente Moreira, nosso líder estimado, em pleno Ponto de Cem Réis, o coração de João Pessoa, apenas dois anos depois de minha saída do Exército, quando já fazia política estudantil de esquerda, como dirigente da UNE (União Nacional dos Estudantes).  Em trajes civis, risonho, procurando conversa, dirigiu-se a mim, desconsiderando o meu “nome de guerra” (Ribeiro):

– Como é, Clemente Rosas, tem comunismo mesmo na UNE?

E antes que eu achasse uma resposta evasiva, continuou, mais ou menos como segue:

– Porque eu estou de acordo com o movimento de vocês.  E se for para valer mesmo, coisa séria, posso até chegar ao coronel do regimento e lhe dizer: o senhor está preso!  Mas não posso entrar nisso às cegas.  Tenho que ter a lista dos principais responsáveis, saber com quem estarei lidando…

Obviamente, a conversa morreu aí.  E como em cidade pequena tudo se sabe, logo tivemos a informação de outro oficial, amigo da minha família:

– Ah, o Moreira agora está fazendo um trabalho para a S2…

A S2, para quem nunca ouviu falar, é a Seção de Informações dos quartéis.

Concluí meu curso de Direito em 1962, e o movimento militar de 1964 já me alcançou formado, como técnico da SUDENE, em Recife. Respondi a três processos políticos, estive 24 horas detido, e enfrentei o desemprego, mas o meu tributo à dita Revolução de 1964 até que não foi tão alto.  Se tivesse ficado em João Pessoa, talvez fosse pior.

Mais de vinte anos depois, reintegrado pela anistia à SUDENE, de onde fora demitido apesar de inocentado pela Comissão Geral de Investigações, por outro capricho do destino vi-me novamente sob as ordens de um militar – este de alta patente.  (Antes disso, já tivera como alunos dois oficiais que haviam sido meus inquisidores. Sérios, dedicados, de mim mereceram o mesmo respeito com que me trataram, quando fui por eles interrogado, nos velhos IPMs).

Como Procurador Geral da SUDENE, tive a honra de trabalhar com o General Nilton Moreira Rodrigues, nomeado seu Superintendente, em sua missão de soerguimento da autarquia.  E, sem nenhuma intenção de deslustre para com os muitos superiores que tive – governadores, secretários de Estado, empresários, altos executivos – não conheci chefe mais democrático, mais íntegro, mais efetivo.  Com ele, as prevenções com os compatriotas fardados, que minha maturidade já vinha dissipando, desapareceram de todo.  Voltas que o mundo dá.