Fernando Dourado

Casarão.

“Quietinha, dona, quietinha, baixe a cabeça, não olhe pra gente, viu. Se não conseguir fechar os olhos, olhe pro chão, tá ouvindo? Mas não olhe pra gente porque se olhar, vai ficar ruim pra senhora, entendeu? A senhora não era pra estar aqui, dona. O que é que a senhora veio fazer, porra? A gente ia passando pela rua, a porta estava aberta, a gente tocou a campainha um monte de vezes e ninguém atendeu. Então, entramos. Tenha juízo, por favor, diga logo onde a senhora guarda o dinheiro. Dê o dinheiro que a gente vai embora. Como não, dona? Uma casona desse tamanho. Não, não é porque a senhora é separada que não tem suas economias, não venha com essa, a gente não é otário. A gente não quer celular, computador, quadro, nada dessas tralhas lá da sala. Mostre já onde é o esconderijo. A gente quer joia, relógio, dólar. Que raça de cachorro é essa? É, foi o que eu pensei. Mas acho que ele não vai longe não, dona, desculpe dizer. Doze anos pra um labrador é fim de linha, posso garantir. Não me diga que a senhora só tem essa micharia. Nunca vi rico tão pobre. Chega a dar raiva. A gente é do bem, dona, mas é que a situação anda difícil, a senhora entende.”

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“Engraçado que quando eu fui para o aeroporto no comecinho da tarde, eu não tive a sensação de que estava saindo do Rio. Era como se uma voz interna me sussurrasse que alguma coisa ia acontecer e que logo eu estaria de volta ao meu pequeno apartamento. São coisas que a gente sente ao bater a porta, especialmente quando se viaja muito. É um sexto sentido que se desenvolve. No caminho, o taxista puxou conversa, mas eu estava entretido com o telefone, lendo a crônica de um amigo virtual da Bahia, morador daqui, que começou a namorar com uma potiguar que vive em Brasília. O divertido é que ele documenta cada passo, o que daria uma mini-série. Então o telefone começou a tocar. Dei uma olhada no visor e resolvi que retornaria a chamada de minha amiga quando estivesse de cartão de embarque na mão, depois de passar pela chateação da inspeção de segurança. Mas aí veio uma mensagem escrita de reforço. Insistir é bem dela, mas nem tanto. O que seria? No saguão do aeroporto, abri-a. Ela tinha acabado de sofrer um assalto em casa. Então voltei para a calçada e pulei no primeiro táxi que vi. Puta que o pariu, só temia que tivessem tocado nela”.

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“Não, ela agora já está bem. Os caras sabiam direitinho o que queriam, cara. Foram direto para a suite principal, não espalharam digitais pela casa e só vandalizaram o quarto porque achavam que tinha alguma coisa por ali por trás das gavetas. A cena quando cheguei era impressionante, tinha tanta roupa empilhada que juro que vi coisas dos tempos em que ainda éramos casados, lá se vão tantos anos. Aproveita e faz uma boa faxina, trata de doar essa velharia toda – eu disse a ela pra descontrair. Nessas horas a vida ensina que a melhor terapia é botar as mãos à obra e deixar o ambiente o mais próximo possível do que estava antes. Eu sabia que havia o risco de apagar digitais, mas mesmo assim não dava para esperar uma perícia com a casa naquele estado. Aquela primeira hora foi de trabalho braçal até conseguir abrir um caminho. O cofre estava estourado a pé de cabra e isso me trouxe algum alívio. Sei que dinheiro que é bom ela não tinha, quando muito teria umas bijuterias, mas ver que os caras chegaram equipados foi um alívio. Eram profissionais. É sempre melhor lidar com profissionais do que com aventureiros. Fica mais difícil achá-los, mas isso não é importante”.

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“Eu mal tinha chegado a Petrópolis quando vi aquela mensagem estranha do amigo de minha mãe. Fiquei sem cor e as pessoas perceberam. Minha prima chegou a me perguntar se alguma coisa tinha acontecido. Não, nada, desconversei, sabendo que não estava sendo muito convincente. Fui ao terraço e consegui falar com meu pai que já estava lá com ela. Ele tentou me tranquilizar e, de alguma forma, conseguiu. Tanto que eu até pensei em voltar para ajudar, mas depois achei que tudo ficaria bem e que esse é um dos preços a pagar por morarmos no Rio, não é? Uma coisa que a literatura me ensinou é que não tem essa de merecer ou não merecer a visita da fatalidade, o mal não pede licença para entrar. É lógico que minha mãe seria a última pessoa a merecer esse susto, mas pelo jeito tudo tinha acabado bem. Consegui depois falar com ela ao telefone. Rolf, coitado, tinha ficado bem comportado, nem festa às visitas ele costuma mais fazer. Tentei desligar, mas fiquei com um pensamento recorrente, o que é normal. Uma hora isso tinha que acontecer. Ainda hoje não sei dizer se teria sido melhor estar lá com ela ou não. Acho que ela se saiu bem, sinto um certo orgulho até”.

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“Menina, eu só soube pelo grupo de WhatsApp da rua. Logo pensei que podia ser aqui na tua casa. Acertei. Na tua posição, sinceramente, eu não sei se é o caso de continuar morando aqui. Não falo por esse incidente, digo no geral. É grande demais para quem tem dois filhos morando no Nordeste e a outra já casada. De vez em quando vejo umas placas de venda de apartamento em ruas simpáticas lá pelas bandas de minha aula de canto. É uma região que pode parecer meio saturada, mas quem mora lá se acostuma tanto que não quer mais sair, pode acreditar. Pelo que você falou desses caras – afinal eram dois ou três? – eles tinham informação sobre a rotina da casa. Nós temos vigilância de uma empresa que faz rondas, mas nem neles eu confio muito. Lá em casa só entra quem for cadastrado na guarita, como em prédio de escritório. Falo isso inclusive com as amigas das meninas. Elas ficam putas, mas eu digo que é para a segurança de todos nós. Quanto você quer por essa casa, só para ter uma ideia? Acho que sei até de alguém que poderia se interessar. Devo ter sido corretora em outra vida, adoro ver gente se mudando. Mas diga uma coisa: eles tinham algum sotaque nordestino?”

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“Eles disseram que iam chamar o Uber na hora de ir embora? Mas são uns canalhas mesmo. Uber, imagine. A senhora pode ter certeza de que lá fora, não longe de sua casa, tinha um comparsa deles num carro de placa fria, quatro portas, Insulfilm nos vidros e um celular no viva voz. A senhora fez bem em não ter dado nenhum alarme. Eles devem ter ficado malucos com sua chegada. Se a casa estava vazia, nem que a gente consiga impressões digitais que comprovem a culpabilidade, o juiz só considera furto. E furto significa responder em liberdade, entendeu? Mas com a senhora lá dentro, além do cachorro, coitadinho, se for descoberto meio polegar que eles tenham deixado por descuido, a gente mete eles na cadeia. Por isso que eles se borram nas calças quando aparece alguém na cena. Eles já são instruídos pelo advogado, entende? Aposto que não tomaram um copo d´água e não fumaram um cigarro. Nem devem ter se interessado por celular, essas cosias de ladrão pé de chinelo. Eles chegaram lá com uma caixa de ferramenta, madame. Eles sabiam o que queriam. Então quer dizer que senhora não tinha nada mesmo, não é? Sorte sua, mas podia ter sido diferente”.

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“Aquilo é um otário. Eu lá dando o maior duro, montado num banco no meio de um monte de roupa, só ouvia o mané falando com a mulher sobre o cachorro, os filhos, e essa tranqueira toda. Meu medo era que ela relaxasse, perdesse o medo, e começasse a levar a gente na conversa. Eu dizia o tempo todo: cuidado aí, dona, se a senhora ajudar, tudo acaba bem. Mas se a gente achar alguma coisa que senhora estiver escondendo, aí a coisa muda. A gente pode furar a senhora, não duvide não. Mas então o Gaúcho ficava com aquela conversa mole. Ele ainda perguntou se ela tinha roupa de homem em casa e eu logo entendi. Se tivesse uma cueca que fosse, era ali que podia estar o cofre. Quando eu estourei o pequeno, bem chumbado na parede, achei que a gente tinha feito o mês. Mas o que tinha lá dentro era uma ninharia, uns euros, sei lá. Meu medo era que o patrão achasse que a gente tinha achado mais coisa e escondido o resto. Nessas horas todo mundo quer levar uma parte, não é? Até o xexelento da chave apareceu no bar como quem não quer nada. Vaza aí, cara, não tem nada não. Tua chave nem serviu, porra. Eu não me impressiono com grandeza. Tem casa pequena que rende muito mais”.

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“A senhora está vendo aquele monte de processo ali? Veja bem, a gente tem até uma ideia de quem pode ser. Se a senhora voltar segunda-feira, nós mostramos umas fotos, mas o bom mesmo é deixar a perícia levantar as digitais. Metade da bandidagem que vai em cana nesses casos, é por causa das digitais. É por isso que eles diziam à senhora que estavam usando luva, essa história toda. Talvez estivessem mesmo, mas sempre pode haver um descuido. Até uns tempos atrás, eu botava o cara sentado naquela cadeira ali e arrancava dele a verdade de meu jeito. Agora eles chegam com advogado e saem direto para a Procuradoria para alegar coação, intimidação. Uns bandidos que não valem nada, que ficam até rindo com o canto da boca. Mesmo assim, mais cedo ou mais tarde a gente chega até eles. Funciona. Mas podia funcionar muito melhor se deixassem a gente trabalhar. A sociedade toda devia passar por essa sua experiência, desculpe dizer, para pensar menos em direitos humanos e mais na gente que fica aqui na linha de frente, sem muito recurso, lutando contra eles e contra os juízes que vivem relaxando a prisão. Mas fique tranquila. A senhora não tinha mesmo dinheiro, não é?”

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“Não, não. Esse miolo aqui é antigo e até muito bom. Não tem sinal de que foi forçado por chave-mestra. Se alguém entrou aqui, e o senhor não precisa me confirmar nada, entrou com uma chave autêntica. A gente que trabalha nisso há muito tempo, sabe quando tem treta no meio. Quando chegam lá uns moleques com o molde da chave no sabão, eu digo logo que bateram na porta errada, que não posso. Eles olham feio, mas vão embora porque não é difícil de achar quem queira fazer o serviço. Mas se o camarada chega com uma chave de verdade, o que deve ter sido o caso dessa fechadura aqui, aí a gente não pode fazer nada. Ou melhor, a gente tem que fazer a chave. Se o senhor quiser, nós podemos colocar aqui uma fechadura Multilock. Aí o senhor pode ficar sossegado porque não há jeito de alguém entrar. Agora deixe eu mostrar uma coisa. O portão da garagem é acionado por controle remoto. O senhor deve saber que isso é a coisa mais fácil para abrir de fora, basta querer. Digo isso para o dia em que esquecer a chave. Aqui estão as cópias novas. São cinco chaves por R$300,00. Fiquei com medo de que o cachorro engolisse os parafusos, mas acho que ele não está enxergando mais, não é?”

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“A senhora entenda, eu não quero fazer julgamento sobre ninguém mesmo porque minha religião não permite. Acusar em falso é pecado mortal, acho eu, ou se não é, deveria ser. Eu gosto de todo mundo aqui, a começar pela senhora e por seus filhos, que Deus os tenha em bom lugar, onde quer que eles estejam morando agora. Até desse bichinho aqui, por velho e doente que esteja, é pra mim como um filho, coitadinho, porque ainda lembro do tempo em que ele corria até o portão quando o passeador vinha pegá-lo e trazia a coleira vermelha na boca porque sabia que ia para a pracinha correr com os colegas. O que eu posso dizer à senhora é o seguinte. Quando o jardineiro veio, ele trouxe dois auxiliares. Um deles não quis almoçar aqui porque disse que não trouxe marmita. Eu ainda oferecei bife, arroz e purê porque a senhora tinha decidido almoçar no clube e eu não como carboidrato já há algum tempo. Mas ele nem quis olhar. Disse que não e saiu pra comer fora. Ele levou a chave do jardineiro porque quando voltasse, talvez eu já tivesse ido embora e os outros dois estariam lá nos fundos. Olhe só, eu só estou respondendo ao que a senhora perguntou, pelo amor de Deus não é um julgamento”.

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“Eu soube que a vovó lá terminou chamando a polícia, tá sabendo. Primeiro nosso cara lá falou que veio a PM, quando vocês ainda não tinham nem chegado de volta. Uns dias depois ela recebeu a Técnica, o que é mais complicado se houve vacilo, se vocês mexeram em alguma coisa. A Técnica ficou lá mais de uma hora e o japonês da lanterninha foi com eles. Foi ele que botou Pinga em cana. O filho da puta lê até pensamento. Agora se tinha um cachorro, mesmo que a velha tenha colaborado, não custava ter enfiado a chave no bicho. Se ela tinha alguma coisa a esconder, era a melhor forma de fazer com que falasse. Matar cachorro não é latrocínio. O doutor pode sempre dizer que o bicho tentou atacar, que foi legítima defesa. Quem é que vai querer saber se era velho, cego ou diabético? No dia seguinte, vocês falharam de novo. O negócio é sair um pouco da área, ficar lá por Vitória por uns tempos, que o pessoal já mapeou coisa boa. O Rio vai mal. Se tiver alguma bronca, paciência. Essa merda de Previdência tem que ir pra frente, cacete. Nunca vi rico tão miserável quanto agora. Até uma casa daquela tem um portão vagabundo que abre com gambiarra. É mole? Rico tem que voltar a ter dinheiro, senão é melhor a gente mudar de ramo”.

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“Nada disso me é estranho. Se eu te contar que já vivi um episódio similar lá no Fundão, você acredita? Fui bater na Ilha do Governador, na saída da UFRJ, e foi um suplício. Até hoje isso me eletriza, me tira do prumo. Você não está aqui para receber parabéns, mas eu acompanhei cada pedacinho do relato e acho que você merece um abraço bem forte. O mais importante nessas horas é não se deixar dominar pelo Eu-Criança. Sei que é fácil dizer, difícil mesmo é agir de conformidade no calor do momento. Mas você foi magistral. Passou credibilidade, cumpriu as regras e, devagarzinho, foi conduzindo-os para a porta da rua. Imagino que apontar o junco de jade que foi de sua mãe deve ter sido doloroso. Mas vá ver que foi para isso que ela te deu de presente. Para que você pudesse tirar o mal de seu quarto e induzisse os caras a terminar a operação. É impressionante que tudo isso tenha ocorrido há menos de uma semana e vocês esteja tão bem, pensando na vida com otimismo. Viva o Eu-Adulto. Não se sai disso sozinha facilmente. No meu caso, ainda tenho momentos de pânico, coisas diversas podem desencadeá-los. Acho que você está bem, não mude sua rotinas, mantenha sua medicação, foque nas suas metas, no seu plano de voo. E fique atenta aos sinais do corpo. Você merece um drinque. Nossa!”

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“Eu pensava em tudo e em nada ao mesmo tempo. Primeiro ficava grata por não ter minha filha por ali. Muito menos um filho porque sabe Deus que reação eles poderiam ter. A preocupação era a respiração. Eu tentava trazê-la para o diafragma, usando a técnica da ioga. Acho que isso me ajudou. Deles eu só via os pés. Um era alto e o que estava fuçando os armários era baixinho, ou pelo menos foi a essa a impressão que me ficou. O alto tinha um sotaque familiar, acho que do Sul. O baixinho era daqui mesmo e me ameaçava de vez em quando. Eu estava apavorada, claro. Foram 40 minutos contados, é tempo demais. Desde que eles me sentaram à entrada do banheiro, diante do closet, eu só pensava em tirá-los dali. Não me agradava que a cama estivesse por perto, acho que você me entende. Tudo o que eu indicava, eles já tinham descoberto e isso me deu credibilidade. Eles custavam a entender que eu sou uma mulher simples, apesar da casa. Até que lembrei da peça de jade da mamãe. Então fomos até a sala e dali eles sairiam, pelo menos essa era minha esperança. O altão perguntava sobre Rolf, meu protetor, tadinho. Ele gostava de cachorro. Quando eles saíram, eu liguei para mim mesma. Eles tinham deixado o celular numa gaveta da cozinha. Eu tremia muito, chorava muito. Quando Jairo chegou, eu disse que não queria chamar a polícia, mas ele insistiu, falou em sub-notificação, essas coisas do mundo dele. Já foi, está passando. Quer outro café? Eu quero, só de falar eu começo a suar”.

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“Eu hoje passo a maior parte do tempo deitado numa cama de borracha azul, que fica na porta que liga a sala ao jardim. Ultimamente eu já não passeio pela casa. Também não brinco mais com os passarinhos do jardim. Meu latido ficou mudo e a visão é turva, e ainda bem que o faro me guia. Dia desses chegaram dois caras, um deles com forte cheiro de cigarro. Achei que fossem os amigos de meu dono que mora longe e fui lá fazer festa, mas eles não deram bola. Foram fazer conserto no quarto da minha dona, mas eu não subi a escadinha porque estou cada dia mais cansado. Todo dia levo injeção e já não me dão maçã, que era a fruta de que eu mais gostava desde o tempo em que vivia aqui com minha mãe, de quem fui o filho favorito. Quando minha dona chegou, ela foi com um dos homens para o quarto. Eu fui junto porque gosto de ficar com ela. Ela estava com cheiro de peixe e muito suada porque ela sua muito. Mas eles foram brincar. Ela ficou sentada num banquinho com um pano na cabeça e eles ficaram tentando achar as coisas, como ela fazia comigo com a bolinha. Quando saíram, o cheiro dela era diferente, eu fiquei por perto e ela gritou no telefone. Então cansei e fui cochilar. É sempre bom um pouco de movimento”.