Café parisiense.

 

Pensei que a quinta-feira 18 seria um dia bom, auspicioso, a escassas 48 horas da partida. Mas não foi. Não por sentimentalismo barato, por nostalgia antecipada, porque estivesse dilacerado pelas saudades de Paris. E sim porque eu não fiz nada de especial. Pelo contrário, tudo foi banal e mecânico. Na verdade, detesto fazer o trivial, aquilo que a maioria das pessoas normais se acostumou desde cedo a fazer. Eu gosto de fazer coisas especiais. Certamente mais errado do que certo, meu pai me instruiu para que eu não perdesse tempo fazendo o que os outros podiam fazer no meu lugar. Que eu só fizesse o que só eu podia fazer. Esse era o princípio de uma vida autoral, como se diz hoje, que naquela época ele chamava de vida vitoriosa. Não é engraçado? Ou seria trágico? A obediência a esse cânone me indispôs para a vida ordinária, para a vida de todo dia, para as providências práticas. Eis mais um defeito dos tantos que tenho no currículo, um atalho perigoso para a infelicidade.

Menos mal que não posso terceirizar certas coisas. Especialmente num dia como o de hoje. Acaso podia mandar alguém fazer um teste PCR no meu lugar? Não. Afinal, o viajante sou eu. Se por um lado não tenho uma mala digna do nome a fazer – duas calças, livros, meias e cuecas -, como delegar a tarefa de percorrer as livrarias e de peneirar as últimas pérolas, sabendo que preciso armazenar um estoque para suportar os dias monótonos que me aguardam no Brasil? Eis outra tarefa intransferível. E quem em meu lugar pode dobrar o farmacêutico de Sèvres-Babylone para adquirir junto a ele uma cota extra dos remédios para colesterol e para a pressão – tudo como forma de adiar ao máximo a exortação mais odiosa que se ouve nas farmácias do Brasil: “Seu CPF, por favor…” Foi assim que passei o dia. Cheguei em casa para minha penúltima noite pronto para fazer as tais coisas sérias. E por muita sorte, vi que poderia descrever esses dois dias finais aqui em Paris para a Será?  

Pois bem, na noite da quinta-feira, o primeiro-ministro Castex, um homem de bem, se enrolou para anunciar um confinamento fajuto em Paris e arredores. Acho que desde o anúncio do Plano Cruzado por Zélia e Kandir não havia no Ocidente semelhante mixórdia de elementos, bem próprios de quem resolve confiar na intuição. E termina por rezar para que as boas respostas venham na medida em que eclodem as más perguntas. Coisa de quem crê no Espírito Santo. Seja como for, só ouvi as explicações com um ouvido. Estava mais preocupado em marcar horário com a pedicure vietnamita porque tudo de que não preciso é de uma unha encravada numa São Paulo confinada. Se ainda fosse no Recife, teria um mestre de ofício à mão. Ao final do discurso de Castex, de que só sobraram medidas que não mais vão me afetar, recebi por e-mail o PCR da viagem, que chegou em apenas 7 horas. Se soubesse que viria tão rápido, o teria agendado para sexta-feira e ficaria coberto num atraso eventual.

Enfim, o PCR deu negativo – o que é sempre bom de ouvir, mesmo para um vacinado. Da companhia aérea, nenhum sinal de cancelamento. Em parte, pensando bem, já não estou mais aqui. Em qualquer viagem, a cabeça costuma se deslocar mais cedo até o destino e, nessa toada, pode até levar o coração junto. Depois chega o corpo. No meu caso, hoje senti que já estava mais alheio à paisagem. Saltei na estação Duroc como um autômato. Voltei pela Sèvres-Lecourbe também como um robô, como se não fosse mais eu quem estivesse ali. Depois voltei para Sèvres-Babylone para o noticiário já aludido. Tinha separado umas garrafas de Bellussi e de Vouvray, mas bebi bem abaixo do esperado. Talvez recupere o caminho amanhã, eu e meu judaísmo torto, dado a celebrar a chegada da noite da sexta-feira. Mas estava esfomeado, isso sim. E merecia jantar muito bem. Afinal, é o penúltimo jantar na França. Isso sim é triste, talvez a lacuna mais dolorosa que vai se abrir depois de 12 meses ininterruptos aqui.

Acho que tinha passado o dia com um cappuccino e um pão de chocolate – a que me acostumei depois de velho, como uma criança que pede o seu à saída da escola, uma tradição francesa. Então ressuscitei um de meus pratos favoritos, bem guardado para um dia como hoje: um delicioso pot-au-feu, um cozido francês bastante semelhante às versões que conhecemos do “bollito misto” italiano, do “puchero” espanhol e do cozido português – para o qual a melhor versão de todas é a nordestina, especialmente a da casa de minha mãe. Não é que não haja concorrentes no Recife, onde a execução do prato é elevada ao PhD culinário. Mas o daqui estava ótimo e leve. Saudável, leva cenoura, cebola, batata e couve. Depois alguns pedaços de carne e linguiça de alho, o que o avizinha do famoso cholent judaico. Só descuidei da mostarda de Cremona e da raiz forte, o que faz falta nas carnes mais rústicas, as não defumadas. E só levantei os olhos para a TV na hora de ver o que Putin respondeu a Biden.

Achei péssimo o tom do presidente americano ao acoimar o russo de assassino. Nem parece um tarimbado nas lides internacionais. Agiu de uma forma histriônica, acintosa, como um paladino que joga para a galera. Poderia ter aprendido com alguns dos antecessores. O mundo político anda azarado. Depois da excrescência de Trump, temos um chimpanzé em casa de louça. Não gosto de Biden. Só gostei porque era o que tinha para tirar Trump. Não gostarei de quem vai substituir o capitão. Mas terá o único mérito de tê-lo destronado. Sem vontade de continuar a noitada, escrevi uma listinha de afazeres para amanhã. Só sobrou a pedicure, a farmácia e pouco mais. O resto é a chave de casa, computador, celular, carteira, passaporte e PCR. Mesmo assim é bom saber que amanhã ainda durmo aqui, que a paisagem não vai se evaporar de vez, que posso fazer as coisas sem atropelo – com a mesma consciência de movimentos que me pautou desde que cheguei. É tudo tão simples que dá até vontade de ir embora.

Quem é do ramo não canta vitória cedo. E sabe que muita coisa ainda pode acontecer. Mas ao que tudo indica, logo será hora de dizer au revoir, Paris. Et merci.

 

Enfant rue mouffetard avec deux bouteilles de vin  Bresson.