Clemente Rosas

Cardume no arrecifes.

Amigos?  Talvez não seja adequada a expressão, pois desde sempre os tenho pescado, e mesmo impiedosamente caçado, por algum tempo, no fundo de suas locas.  Mas sempre com a autoimposição de comê-los, pois é da natureza humana comer outros viventes de carne e osso.  Como disse Augusto dos Anjos, com sua habitual amargura, na segunda estrofe do poema “À Mesa”:

Como porções de carne morta. Ai! Como

Os que, como eu, têm carne.  Com este assomo

Que a espécie humana em comer carne tem.

Como! E, pois que a razão me não reprime,

Possa a terra vingar-se do meu crime

Comendo-me também!

De que a “vingança” da terra se dará, nenhuma dúvida podemos ter.  E que assim seja.  Pois não temos como fugir à nossa sorte: somos dotados de caninos.  Só os mamíferos herbívoros não os têm, e aí reside, no meu modesto parecer, a incongruência dos vegetarianos radicais.

Se expandirmos a visão, veremos que a matéria viva se nutre dela própria, entre os reinos vegetal e animal, e mesmo internamente a ambos: plantas sufocam e sugam suas congêneres, animais se entredevoram. A harmonia da natureza é apenas um mito conveniente para conter os impulsos destrutivos do bicho homem.

No entanto, é possível uma relação de respeito, e mesmo de familiaridade, entre algozes e “vítimas”.  Os relatos cinematográficos nos dão conta da atitude reverente dos índios americanos em relação aos búfalos, de quem dependia a sua vida.  E Guimarães Rosa, em seu conto “Meu Tio, o Iauaretê” – na verdade, o monólogo de um caboclo, vivendo isolado nas brenhas, e tendo como única missão caçar onças, que o escritor soube captar com maestria – nos dá conta da atitude respeitosa e empática desse homem para com o animal que ele tinha a obrigação de matar.

E assim me comporto eu em relação aos meus amigos peixes. Os muito pequenos, ou não comestíveis, devolvo ao mar.  E também, excepcionalmente, pela raridade, aquele que me parece o mais bonito de todos: o mercador. Cortado por várias listras da cor do ouro, ao longo do corpo, e duas listras negras verticais, à altura da cabeça, nunca aparece em cardumes, é sempre um exemplar perdido no meio das mantas de xiras e biquaras.  Os demais são excelente acompanhamento para a cervejinha pré-prandial dos litorâneos.

Antônio Callado, no romance “Quarup”, um verdadeiro compêndio de brasilidade que encantou seus compatriotas, sobretudo os exilados à época do lançamento do livro, ao falar da temporada praieira do seu herói, dá-se ao trabalho de listar os nomes de peixes do litoral nordestino, em longo trecho da obra.  Mas, sulista como era, e jornalista, deve ter perguntado a alguém do ramo, e anotado num caderninho, como também fazia Guimarães Rosa.  É a limitação de quem não viveu o que descreve.  Aliás, revelada ainda ao batizar outro personagem seu de Manuel Tropeiro, quando o nome usado nos sertões do Nordeste para quem tange boiadas, a pé ou a cavalo, é “tangerino”.

(Nada grave.  Vargas Llosa, em seu “A Guerra do Fim do Mundo”, depois de demonstrar uma extraordinária capacidade de penetração no ambiente e na alma dos nordestinos, claudica, já no final do livro, ao retratar uma mulata baiana com “longos cabelos negros”).

Na esteira de Antônio Callado, e até mais à vontade, por ter convivido, desde a infância, com jangadeiros, com quem fiz meu aprendizado e o pus em prática, mergulhando e pescando, posso também fazer o inventário dos meus amigos do mar, com registro especial de suas qualidades e excentricidades.

Dos peixes de superfície, pescados com linha de corso ou de bibuia, ou aprisionados em redes ou currais, temos a cavala, o serra, a bicuda (barracuda), o galo do alto, a albacora (atum), a arabaiana (de carne cor de rosa), o xaréu, a garacibora (xaréu branco), o dourado, como também, noutro plano, a agulha, o agulhão, o agulhão de vela (espadarte), a garajuba, o xixarro, o galo, o pampo, todos sem ou com poucas escamas.

Ainda como peixes brancos, mas escamosos e de profundidade, temos o pirambu, o paru branco, a carapeba, e, um pouco mais escura, a salema, impossível de ser comida, pelo seu forte odor de produto químico, capaz de inutilizar a panela em que se tentar prepará-la.

Com semelhanças de cor a estes já listados, vem a fauna estuarina, representada pelo camorim, o camurupim (de grande porte), o espada, o tibiro, a pescada, a curimã (que antes foi tainha e foi saúna), e outros de menor prestígio.

Na categoria dos “vermelhos”, além da cioba (a mais prestigiada), temos a guaiúba, o dentão, a caranha e o ariocó, de igual ou talvez melhor sabor.  No time dos budiões, figuram o budião-bindalo (verde e escorregadio como sabão), o budião-batata (gordo e de cor terrosa), o budião dente verde (largo, com sua cor azul escura e seu bico ósseo esverdeado) e o budião-tucano, muito raro, que rivaliza em beleza com o mercador: tem o corpo dividido por uma linha imaginária oblíqua em duas cores vivas: o vermelho e o amarelo.

A garoupa, o cirigado e o mero (cuja caça hoje é proibida) compõem o grupo dos peixões, lentos, quase sempre abrigados em locas. A carne do cirigado foi “promovida” pelos cearenses, constituindo o prato mais badalado dos seus restaurantes. Coisa semelhante ocorreu em Pernambuco com o beijupirá, também conhecido como “tubarão de escamas”, que hoje dá nome a dois dos melhores restaurantes de Olinda e Porto de Galinhas.

No grupo dos que se abrigam nos corais, vamos encontrar as caraúnas, marrons ou azuis, de belo visual e caça fácil, mas de carne insípida.  Estas têm, nos dois lados das caudas, espinhos camuflados, que podem fazer estragos nas mãos de pescadores incautos.  E mais as mariquitas, bem vermelhas, sempre eriçadas e de grandes olhos negros, habitantes preferenciais das tapitangas, e o paru preto, largo como um disco, com pintas amarelas, curioso ao ponto de se aproximar do mergulhador, mas de carne imprestável. Por fim, os saberés, de listras amarelas, famosos ladrões de iscas, tão alimentados recentemente pelos turistas com farelos de pão, que estavam desbotando, e a prática foi proibida.

Na categoria das “serpentes marinhas”, registramos a “amoreia” (moreia, com prótese do “a”), extremamente agressiva quando atacada, com dentes afiados, mas carne comestível, e a mututuca, esta com perfeita forma de ofídio, rolicinha e pintada, mas que não serve pra nada.

Completo a lista com os vertebrados marinhos exóticos: o cação-lixa, tubarão sem barbatana dorsal e sem dentes, que morde mais por sucção, a “soia” (solha), chata e com os dois olhos do mesmo lado do corpo, o baiacu, que incha o papo cheio de espinhos, o “voador de pedra”, com barbatanas laterais longas como asas, o “tubarão morcego”, misto de arraia e tubarão, sem dentes, o pacamom, de grossa crosta e boca grande como a de um sapo, o anequim, com um espinho venenoso no lombo, que ele projeta quase verticalmente na planta dos pés de banhistas desatentos, e finalmente, em lugar de honra, o “peixe cachimbo”, com toda a sua pinta de animal pré-histórico: cascudo, com um inexplicável chifre e dois braços dos lados terminando em barbatanas. Apesar de horroroso, é absolutamente inofensivo, podendo ser apanhado até com a mão, se alguém o quiser, só por curiosidade.

E para não terminar com essa coorte de pequenos monstros, homenageio os meus peixinhos de caniço, ainda abundantes no mar de Formosa, apesar da intensidade com que são apanhados, desde que me entendo de gente, há bem mais de meio século.  A eles me dedico agora com exclusividade, pois o mergulho em apneia, em águas profundas, não se recomenda a quem está perto dos oitenta.

Os xiras e, em segundo lugar, as biquaras, são os mais numerosos: em cerca de uma hora de pesca, pode-se encher o samburá com uma centena. Mas há espaço para a quebra da monotonia, com outros espécimes: carapicus, cambubas, corós, saramonetes, budiões-bindalos, budiões-batatas, ciuquiras (ciobinhas novas), gatos (de pintinhas vermelhas), baúnas, xareletes…

Pródigos mares, que tanto nos oferecem!  Por isso serei sempre seu humilde e fiel vassalo!