Fernando Dourado

Fernando Dourado.

Todos os detalhes estavam finalizados. Entre o feriado de 1 de maio de 2019 e o domingo seguinte, passei ao editor a minibiografia pedida, os textos sugeridos para a contracapa e as badanas – nome que se dá em Portugal às orelhas dos livros -, e batemos o martelo com respeito à capa. A diagramação estava impecável e só faltava que me desse por liberado de minha cota de contribuição. Até que…até que num passeio avulso pelas ruas de São Paulo, ocorreu-me que ainda poderia dar à Carta a Portugal um subtítulo. Alguma coisa que despistasse o eventual leitor da desconfiança de que se tratava de um romance sisudo e excessivamente sério, quando não de um manifesto cívico. Um subtítulo, enfim, que conectasse o texto às vezes mal-ajambrado de meu narrador a algo de suas origens. E então, no telefone mesmo, digitei à Glaciar: Divagações de um velho sertanejo sobre a Água e a Pedra endereçadas ao Senhor Presidente. A falta de reação imediata me dava duas possibilidades. Ou bem o editor o aprovara sem delongas. Ou o adendo chegara tarde demais para ser colocado na capa, o que era o mais provável. Pois bem, só dias depois eu saberia que a primeira hipótese fora a que vingara.

Junho de 2017

Carta a Portugal pode bem ter vindo à luz naquele dia quente, muito quente, de junho de 2017. Eu viera a Lisboa por ocasião da grande Feira do Livro, um evento que ultimamente vem coincidindo com temperaturas saarianas, agravadas pelas imensas rampas de subida do parque Eduardo VII, ali na altura do Marquês. O evento em si não me trouxera alegrias especiais, salvo por confirmar o que eu já intuía. Quando não se é conhecido de televisão e/ou de outras mídias, quando o escritor ainda não emplacou um sucesso digno do nome, de pouco valerá ali chegar para assinar meia-dúzia de autógrafos e pousar para fotos diante das meninas da comunicação social da editora – que assim se sentirão desobrigadas a dar maiores prestações de civilidade e tato. Fica sendo, portanto, só mais uma etapa da linha de montagem. Ainda assim, saí de lá de bom humor, pensando na comida suculenta de “O Magano”. Se jantasse cedo, chegaria em casa a tempo de assistir ao noticiário antes de dormir. Assim foi. Mas ora, este estava totalmente dominado pelo devastador incêndio de Pedrógão Grande que, em minutos, matara desde a véspera dezenas de pessoas, com línguas de uma labareda infernal que nada pouparam. No centro dos acontecimentos, chamou-me a atenção a diligência de certo homem junto aos enlutados e socorristas. Tratava-se do Presidente de Portugal, o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Até aqui, ele era apenas um dado de informação.

Junho de 2018

Ano passado, portanto, doze meses depois dos marcantes eventos portugueses, fui caminhar em Boa Viagem, no Recife, às primeiras horas da manhã. Na Rússia, a Copa do Mundo seguia seu curso e eu estava empenhado em não perder uma só partida, tanto quanto possível. Desestimulado a voltar a Lisboa por ocasião de uma nova Feira, pensava com meus botões sobre se não passava da hora de escrever mais um livro. Desta feita, não mais faria uma coletânea de textos já publicados. Tratar-se-ia sim de um romance inédito, não muito caudaloso, alguma coisa que o leitor médio lesse no transcurso de um voo São Paulo-Recife, minha unidade de tempo mais testada. Naqueles dias, comprara um computador novo e queria estreá-lo com algo inusitado. Roupa nova, namorada nova – era assim que pensava na adolescência. Então, chegada a noite, depois de ouvir os últimos comentários que vinham da Rússia sobre a evolução da Copa, sentei à mesinha, escrevi o título Carta a Portugal no alto da página em branco e comecei a teclar. Senhor Presidente, e assim continuei. Parecia que alguém estava querendo dizer alguma coisa àquela figura pública que tanto me marcara um ano antes, por ocasião do incêndio. Mas o narrador, este nada tinha a ver comigo. Ou se tinha, não saberei jamais. Como escritor e cidadão, contudo, imagino que me preocupava olhar para frente e ver que o Brasil de 2018 rumava inexoravelmente para uma entre duas opções eleitorais temerárias nas presidenciais. Em suma, a turma do Centro radical – que é a minha – estava condenada ao limbo. O professor Marcelo precisava saber disso.

O que veio depois

Em dias, poucos dias, veio à luz o pequeno romance epistolar. Embora escrever este making-of  não integre os bons cânones da literatura, por que me furtar a transgredir as normas, se sempre fui um belo de um desnaturado? Pergunto: por que haveria de me sair muito diferente daqui em diante? Na verdade, não estou empenhado em explicar minha ficção. Quero apenas relatar para mim mesmo os bastidores desse livrinho, como forma de tentar lhe pressagiar um futuro qualquer. Importante é que ao cabo de poucas semanas, achei que poderia submetê-lo à apreciação de Homero Fonseca, o olho literário mais clínico dos tantos que já conheci na vida. Premido pela minha ansiedade, eis que ele passou a caneta sob algumas linhas. “Isso aqui é Fernando Dourado demais, não vejo o narrador”. Ou “quem foi analfabeto até quase os 20 anos, como é o caso de sua personagem, não usa essa construção. É sofisticada demais, vamos convir”. Ou ainda: “isso aqui é gíria do Sul maravilha, camarada, não a coloque na boca de um sertanejo. Não esqueça que a empatia integra o bom texto. Não faça como Lúcio Cardoso, que botava todo mundo para falar no mesmo registro”. Mas, no final, veio o que eu mais queria ouvir. “Conserte essas coisinhas e mande para uma editora. Tenho certeza de que passa pelo comitê de avaliação da maioria”. E foi assim que voei para Portugal semanas mais tarde. Por todas as razões do mundo, era em Lisboa que se lançaria à sorte minha Carta a Portugal.

Póvoa de Varzim

Quase outro ano se passou. E cheguei na noite do dia 5 de junho de 2019 à Póvoa de Varzim, terra de Eça, com o fito singelo de escapar das tarifas de hotel do Porto, anabolizadas por milhares de torcedores suíços, ingleses e holandeses que acorreram à cidade para um torneio de futebol. Da estação de Campanhã, peguei o metrô de superfície cuja última parada é justamente aqui, à beira do Atlântico. O trajeto leva uma boa hora. Caminhei da gare até a pensão, passando pelo coreto da praça onde Eça há de ter ouvido música quando criança. Bati palmas na rua e o estalajadeiro Bruno me chegou destilando simpatia e tabaco, e apresentou-me o pequeno apartamento de onde se vê uma nesga de mar. “O senhor Fernando é o primeiro ocupante desta morada, gostaria que soubesse. Obrigado por escolher-nos. Vai gostar muito da Póvoa, somos cá uma gente especial. Se me permite dizer, nada temos que ver com os lisboetas. Aqui temos tempo para conversar e gostamos disso”. Apesar de exaurido da viagem de trem que fizera desde a capital, cercado por hooligans embriagados a entoar paródias infantis e a beber no gargalo generosas talagadas de Jameson, deleitei-me com as sardinhas que o garçom Antônio (aqui é António) insistiu para que eu comesse. Fresquinhas, suculentas e com bastante óleo. “Trago-lhe meia dose a 7 euros com seis unidades, está bem assim? É a época delas como sabe. Um vinico verde, um queijinho de saloio para que se distraia e uma sopinha de mariscos. Pode ser?” Claro, claro, manda ver, António.

O amanhecer de 6 de junho de 2019

Hoje se completam 75 anos do desembarque dos aliados na Normandia. Hoje também vivo meu Dia D. Carta a Portugal está pronto e algumas caixas acabam de chegar da gráfica. Ficou lindo o livrinho, está esmeradamente editado e estará nas principais livrarias do país a partir do dia 18 de junho. Entre a exortação alvissareira de Homero Fonseca e este dia em que recebo os exemplares que quero levar para o Brasil antes mesmo que saia uma edição local, percorri um caminho que não foi imune a algumas caneladas, requereu bastante perseverança e um senso de urgência quase patológico. Ora, quando vim a Portugal em agosto de 2018 e submeti o livro a uma avaliação crítica por indicação de uma candidata a agente, senti que poderia estar próximo de ser publicado por uma editora bem conceituada. Isso porque o relatório apontou vários méritos no texto, e apenas uma correção de rumos. Esta, digamos, de cunho estrutural. Levei-a a Homero que me orientou sobre como proceder à manobra de atracação, sem riscos de colidir com o molhe e danificar a carcaça da nau. Mas daí a achar uma editora que se encaixasse no meu cronograma interno, ia uma distância. Voluntarismo? Talvez, sei que nunca estive imune a ele. Mas acabou. Hoje vejo que o problema foi bem resolvido e que até os percalços ajudaram. Amanhã, portanto, volto para o Brasil. Terça-feira, apresento o livro no Recife num pequeno evento.

Lisboa, dias atrás

Passei a última semana em Lisboa, no Porto e em Aveiro. Estive por três oportunidades com meu editor, e sobre ele só ouvi as melhores referências. Não parece ter dúvida de que o livrinho terá algum sucesso, mas certo mesmo é que demonstra uma consideração extremada pelas minhas coronárias. A todo instante me instou a não nutrir expectativas e – olhem que isso me comoveu – preferiu aplicar-me pequenos choques de realismo a deixar que o autor construa seus castelos de areia. Vê-se que mais do que um atavismo, trata-se de uma conduta responsável, cautelosa, própria de quem antes de se enfronhar no mundo dos livros, jamais perdeu de vista a formação científica de origem. Nesse ponto, e aqui já não falo dele, o brasileiro menos versado nas lides desse povo generoso, que entremeia as falas com diminutivos até para o que já é pequenino, vai sempre ficar chocado com a quantidade de nãos que ouve à menor provocação. A inapetência dos portugueses pela ambiguidade, a predileção pelo sim versus o não, o zero e o um, a aclamada armadilha binária, tudo isso faz da maioria deles uma gente de sábio conversar. Mas pobre daquele que pensar que a língua só nos aproxima. Pelo contrário. Aliás, a conversa mais descontraída que tive aqui nesta temporada foi com a dona do restaurante de peixe de Aveiro. Tomando-me por mais um britânico, tivemos ótimo bate-papo. Em inglês, of course. Falar português aqui não deixa de ser uma fonte permanente de tensão.

Logo saberemos

É forçoso que o admita. Por uma vez na vida, eu gostaria que um livro meu conhecesse algum sucesso comercial. Carta a Portugal poderia ser um bom começo. Certamente não estou de olho nas receitas com as vendas porque, de fato, elas podem ser tremendamente irrisórias quando comparadas às de qualquer outra atividade a que nos dediquemos com um mínimo de afinco. Nada pode remunerar tão mal quanto escrever. E nada vai trazer maiores danos à saúde do que passar horas sentado ao computador, sacrificando o tempo que seria dedicado a leituras estas sim edificantes, aos bons filmes, aos passeios a dois, e até às salas de espera dos médicos para que estes procedam a exames minuciosos em nosso próprio benefício. Ao contrário dos cuidados paliativos das emergências em que finjo sintomas para esclarecer, diagonalmente, dúvidas pontuais sobre as dores que deveras sinto. Sim, escrever poderá me custar alguns bons anos de vida, não tenho grande dúvida a respeito. Por outro lado, um mínimo de sucesso comercial tornaria a peregrinação às editoras menos desgastante, um pouco mais igualitária. Na hipótese de ter mais títulos engatilhados, se tudo correr bem agora, talvez encontre pela frente uma ladainha diferente. No geral, as casas de edição levam meses para ler 100 páginas, anos para publicá-las, e ainda se saem com uma cantilena que valeria a seus autores a execração definitiva, se eles ousassem repeti-la. “As grandes redes quebraram, deram calote em todo mundo, o brasileiro só lê autoajuda e estamos aqui por puro heroísmo”.

Pois que seja. Herói por herói, sou mais eu. Espero revê-los pelas páginas de Carta a Portugal.

 

Lançamento:

Auditório da Ferreira Costa Tamarineira.

Rua Cônego Barata, 275 – Tamarineira, Recife – PE, 52051-020

Data: 11 de junho, terça-feira a partir das 18:00