Paulo Gustavo

Louis-Ferdinand Céline.

Acabo de ler seu livro de estreia, uma obra-prima da literatura francesa. Até hoje as obras-primas nunca disseram como nascem. Sobre isso, Borges certa vez chamou a atenção: ninguém pode dizer que vai sentar e escrever uma obra-prima. De fato, a banda não toca assim. Esse livro de estreia é um romance do século 20 e vem ferido pelo fogo da Primeira Guerra Mundial. É um texto explosivo, um campo minado, onde logo se percebe que a realidade é o grande pesadelo.

Não sei se o autor é um “Proust dos pobres” como um crítico o chamou (não descobrimos o nome desse crítico), embora tenha o vezo proustiano do comentário reflexivo, das metáforas, das comparações e das elipses temporais. O olhar agudo não perde os instantes decisivos e os detalhes da miséria humana. Não há qualquer conforto na sua leitura: há uma luta sem trégua contra a insignificância. Sua revolta não dispensa chamar as coisas pelos nomes que refogem à melifluidade dos metafísicos. Lembra-nos por vezes do baixo corporal de Rabelais, tão bem estudado por Bakhtin. Também estamos nas mãos da grande ironia, da gigantesca ironia de certos pessimistas militantes. Aqui e ali, ele, o autor, asperge, como uma água benta dos demônios, uma aguardente tão forte que nos deixa despertos e acelerados. A inquietação do narrador nos leva em turbilhão e correnteza. Parece que, enquanto leitores, nunca dependemos tanto dessa companhia aventureira de alguém sempre agarrado à sensorialidade do mundo, sobretudo quando o mundo é uma fonte de insensatez e desapontamento ou, por outro prisma, de prazeres vigorosamente carnais. Cinismo, encantos do cinismo. Encantos também de uma hemorragia niilista e sedutora. Todavia, é nesse mundo material e tomado pela loucura que não se deixa de ouvir a voz da razão; rouca é verdade, mas como uma pequena ilha a nos salvar na torrente. Finalmente, poderíamos dizer: sim, é um livro para o nosso tempo. Sua poesia, dura e ácida, antecipa muitos poetas que fazem da angústia de um instante uma iluminação feroz para olhos já cansados.

Essas, minhas impressões de Louis-Ferdinand Céline após a leitura de “Viagem ao fim da noite” na cuidadosa tradução de Rosa Freire d’Aguiar. “Viagem” é cheio de relâmpagos e escuridão. Sua linguagem crua tem o sabor expressionista de uma tela febril. “Viagem” nos cansa e nos exaure, embora tenha humor e sabedoria. Não por acaso o vinculam a Proust, de quem é assumido admirador e epígono. Para ele também o tempo é uma sombra que vai prenunciando o nada e relativizando tudo.

À semelhança do que ocorre no estilo de Proust e de Jules Michelet, o esteio estilístico de Céline é sobretudo a metáfora (e com isso não digo nenhuma novidade). É ela que aproxima distâncias e que traz graça e leveza ao peso inescapável de seus temas e subtemas. Até porque Céline não recua ante o horror e sempre retoca a pincelada com o veneno preciso de um escorpião. Céline é um Proust sem cortiça, mais viril e mais agressivo, mais tenso e mais atento à dicção despudorada das ruas e da praça pública.

O poeta Paul Éluard, também francês, contemporâneo de Céline, tem este título num de seus melhores livros: “O duro desejo de durar”. É o que flagramos no anti-herói narrador de “Viagem”. A sua dura viagem é esgotar a vida e o desejo, ainda que tal viagem, tenebrosa e errática pela própria natureza, tenha uma bússola que aponte para o nada. Dessa forma, só mesmo a linguagem da poesia para corresponder à dureza entranhada na vida. Num mundo em que não há lugar, resta o jogo da viagem e da impermanência. É o que nos traz Céline em sua noite perturbada e fria.