Sou carioca de coração. Tornei-me quase de repente. Foram necessários apenas dois anos. Entre 1971 e 73. Quando fiz meu mestrado na FGV.
Já acompanhava, de longe, parte da vida do Rio. Sabia da Bossa Nova, nos anos 60, com Bôscoli, Carlinhos Lira, Nara Leão, Tom Jobim, Roberto Menescal. Lia semanalmente O Pasquim, com Millôr, Paulo Francis, Jaguar. Comprava os livros dos cronistas meus favoritos: Paulinho Mendes Campos, Rubem Braga e Oto Lara Resende. E as crônicas de Carlos Drummond de Andrade, no JB.
Nos anos 70, quando a grana dava, eu frequentava o Chico’s bar. E, tomando um uisquinho amigo, navegava as notas do piano de Luizinho Eça.
Pois bem. Passa o tempo. E começo a ler notícias sobre o aumento da violência no Rio. Vigário Geral, Jacarezinho. Virou a Cidade Partida, de Zuenir Ventura. Duas classes sociais, dois bairros, duas culturas.
Nesse quadro de afronta aos direitos humanos, fenômeno recente agudizou a desonra: operações policiais nas comunidades pobres. De que sempre resultam mortes. Ontem, foi o infortúnio de Kahtlen, de 24 anos. Grávida de quatro meses. Foi a décima quinta mulher grávida morta em morros cariocas em três anos.
Não consigo compreender o conceito de autoridades que autorizam este tipo de ação. Por que não desenhar uma estratégia que substitua policiais por professoras, médicos, assistentes sociais, psicólogas, urbanistas ? Violência gera violência. Paz gera paz. Simples assim.
Instalou-se no país uma cultura de confronto. Que não está na raiz do afeto brasileiro. Não me refiro à conciliação pelo alto. Que deixa à margem a maioria desprivilegiada da sociedade. De que falou José Honório Rodrigues, em Conciliação ou Reforma no Brasil.
Fere-me a falta de espírito de solidariedade. A incapacidade de atuar com inspiração cristã. A ausente vontade de governar democraticamente. Sem o disfarce de hábitos farisaicos.
Fere-me ataque às instituições por grupos extremistas. A desconstrução de patrimônio natural e cultural gerenciado por quem institucionalmente seria responsável por sua proteção. É tudo muito triste. Como é possível não enxergar o que se está fazendo ao Brasil ?
A cortina da noite desce sobre o Capibaribe. Olho o sereno deslizar de sua arquitetura fluvial. Lanço minha triste lembrança nas águas do rio. E tiro do bolso de minha alma um pedaço do Rio, amistoso, lúdico, carinhoso como Pixinguinha. Um pedaço azul, das tardes em que, voltando da Fundação, eu parava no Barril 1800. E pedia um chope para ver o sol de infinda esperança descair por trás do morrote do Leblon. Aplaudindo, como meus irmãos cariocas, a grande arte do autor.
E, para encerrar, que já são horas, apanho na estante Uma Mulher Chamada Guitarra, de Vinicius de Moraes. E leio:
“O perfume do mar, por exemplo, eu o sentia em toda sua frescura, verde, salso, infinito, e também o cheiro da areia que, por sua vez, cheirava a nuvem”.
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