Quando Nicolás Maduro participou pela primeira vez da campanha eleitoral para a Presidência da Venezuela, há dez anos, apareceu no dia do lançamento das candidaturas, em 2 de abril de 2013, contando num grupo reunido ao ar livre que Hugo Chavez lhe aparecera como “un pajarito chiquitito” e lhe dera a benção para iniciar a batalha. Não se passara nem um mês da morte de Chávez, um líder popular. Maduro levantou os braços – “me dio tres vueltas aqui arriba” -, até imitou seu assovio que achou lindo. “Entonces yo me quedé viendo y también le silbé, pues. ‘Si tú silbas yo silbo’, entonces silbé. El pajaro me vio raro, no? Silbó un ratito, me dio una vuelta y se fue y yo senti el espiritu [de Chávez]”.

O vídeo de 2013 ainda pode ser achado no Youtube – pra quem duvida. Deu milhares de piadas nos meses seguintes. Mas funcionou a favor de quem nada tinha a oferecer aos eleitores se não a memória de Chávez. Duas semanas depois o motorneiro do metrô estava eleito Presidente. E continuou em campanha, com outra homenagem estranha: em 31 de maio de 2013, Maduro adicionou a assinatura de Hugo Chávez à Declaração da Independência da Venezuela de 5 de julho de 1811! Uma afronta à história? Ora, Chavez em espírito, que ainda apareceu outras vezes para Maduro, podia também assinar a Declaração de Independência 202 anos depois.

Em 2023, Nicolás Maduro está mais uma vez em campanha eleitoral. Em abril começou seu programa de TV de 2ª feira de tarde, junto com a “jornalista Sira”. Nada do “pajarito”. Na abertura, “Sira” cumprimentou Maduro e se apresentou: “fui criada por inteligência artificial para acompanhá-lo a partir de hoje em seu programa Con Maduro. “Vamos a la vanguardia comunicacional y tecnológica” anunciou Maduro mais adiante. Vamos ver se terá o mesmo resultado do passarinho de 2013, no aumento de popularidade do Presidente que, segundo o respeitado instituto de pesquisas “Datanalisis”, está em uns 20%. Não vi piadas com a “Sira da IA contra a CIA”. É notório que desde 2013 aumentou muito o controle e a repressão do governo na Venezuela, também na mídia, e o principal jornal, El Nacional, já não existe em versão impressa desde 2018. Fora do país é intenso o debate sobre o uso de “fake news” pelo governo venezuelano, dirigidas não só ao público dentro do país mas também ao exterior. (Deepfake ‘news’ videos ramp up misinformation in Venezuela, Financial Times, 17/03/2023)

Se, e quando, teremos eleições na Venezuela é outro assunto. Uma data estabelecida ainda não há. Em tese, deveriam ocorrer eleições presidenciais ano que vem, ao fim do segundo mandato de 6 anos de Maduro. Mas na ditadura venezuelana é Maduro quem decide se há eleições e quando, e em caso de haver eleições, se elas são manipuladas, na campanha, antes da campanha, ou durante a votação[1].

Em todo caso, há sinais de que Maduro se dispõe a se submeter a eleições, como seu programa de TV e negociações em algumas frentes. Insiste que “eleições livres e justas são eleições sem sanções”. Mas quem sabe possa reportar algumas melhorias na situação econômica, mesmo que sanções permaneçam. Pelo menos a partir de 2020, respondendo a algumas medidas de liberalização do governo, a economia parou de encolher, começou a sair do fundo do poço a que chegara em 2019.

Estatísticas confiáveis não existem na Venezuela, desde que Maduro demitiu sua Ministra da Saúde por divulgar dados sobre doenças, e contas nacionais não se calculam desde 2013. Não dá para acreditar que o PIB da Venezuela cresceu 15% em 2022, como disse Maduro na sua apresentação sobre “o estado da união” em janeiro de 2023. Mas o FMI estimou algo como um crescimento de 9% em 2022, e prevê 5% positivo este ano. Claro que isso tem que ser colocado em perspectiva: mesmo com essas taxas, o PIB não volta ao que foi antes da era Maduro, quando já teve o triplo do tamanho atual. E a inflação continua elevada, segundo o FMI foi de 400% em 2022. E estaria rodando a uma taxa anualizada de mais de 300%. Certamente progresso para o país que já teve inflação de 1.350.000% ou mais [2].

Vários fatores, internos e externos, explicam a recuperação recente da economia venezuelana. Começou pela dolarização, que foi acontecendo espontaneamente, para fugir ao Bolívar cujo valor derretia a cada minuto, e fazendo valer as remessas elevadas (como proporção do conjunto da economia) da diáspora venezuelana. Inicialmente reprimida pelo governo, passou a ser tolerada desde 2018 e depois até incentivada pelo BC venezuelano, que reduziu controles de câmbio. Essa dolarização levou a uma expansão do comércio e dos serviços, e ajudou na queda da inflação (pela redução do uso do Bolívar nas transações). Mas a recuperação tem pouco fôlego, como a redução do ritmo de crescimento já mostra. É ilustrativo que ano passado, 2022, foram abertos 200 restaurantes em Caracas, e a metade já fechou de novo.

No front externo a Venezuela foi beneficiada pela guerra na Ucrânia, mesmo que também prejudicada pelas sanções à Rússia, reconhecidamente porosas até na Europa. Emissários do Departamento de Estado procuraram contato com a administração venezuelana pouco depois da invasão russa de fevereiro de 2022. E em meio ao nevoeiro de uma guerra de informações que existe em relação à Venezuela, há eventos concretos a registrar. Que sabe a normalização das relações diplomáticas com os vizinhos, que vem ocorrendo por diferentes motivos, e a volta das embaixadas, ajude a melhorar a qualidade da informação que temos da Venezuela.

Os Estados Unidos voltaram a se interessar pelo petróleo venezuelano. Ocorrem muitas reuniões. A retórica das autoridades americanas se tornou mais branda. Foram retomadas as negociações entre o governo venezuelano e a oposição no México, com intermediação da Noruega. Em outubro do ano passado a Venezuela libertou 7 americanos que estavam presos desde 2017 (https://www.state.gov/the-release-of-u-s-nationals-from-venezuela/), um grupo que inclui executivos da Citgo Petroleum Co. vítimas de uma cilada quando foram chamados, naquele ano, para uma reunião técnica na PDVSA.

Depois que o Tesouro americano, no fim de 2022, autorizou a Chevron a operar na Venezuela, o Ministro do Petróleo Tarek El Assaimi e Javier de la Rosa, Presidente da Chevron, assinaram acordo para continuar atividades de operação e produção. O acordo chega a cobrir 20% da produção de petróleo da Venezuela e prevê que o controle desses campos de petróleo estará nas mãos de empresas privadas, inclusive o fornecimento, a exportação e a contratação de pessoal. Houve surpresa porque a PDVSA não protestou nem tentou impedir o acordo que introduziria concorrência. Maduro fez valer o acordo, mas Tarek El Assaimi pediu demissão em março deste ano, alegadamente para facilitar uma investigação sobre corrupção na PDVSA, cujos repasses ao governo estavam diminuindo. O protesto mais indignado contra a atenuação das sanções para a Chevron veio do pioneiro do óleo de xisto betuminoso (“shale oil”) nos Estados Unidos, o bilionário Harold Hamm.

Maduro espera obter recursos ainda pelo desbloqueio de fundos do Estado venezuelano que estão no exterior em contas bloqueadas pelas sanções dos EUA. Por exemplo, a Venezuela tem 1 bilhão de dólares no Banco da Inglaterra, provenientes da venda de ouro, que há tempos Maduro reivindicava receber via programas do PNUD. Nas negociações no México foi decidido, em fevereiro deste ano, que o governo da Venezuela receberá cerca de 3 bilhões de dólares da tais fundos congelados, que serão transferidos para a ONU como um fundo especial (“trust fund”) e administrados pela ONU como ajuda emergencial à Venezuela. A liberação dessa ajuda ainda está travada por detalhes jurídicos.

Ainda que o último relatório da ACNUR, a agência de refugiados da ONU, informe que em 2022 nada menos que 264 mil venezuelanos entraram com pedido de asilo, até o drama dos refugiados da Venezuela saiu do foco, ofuscado pela tragédia dos 5,7 milhões de fugitivos de guerra que deixaram a Ucrânia no último ano.

Ao mesmo tempo está cada vez mais espalhada a convicção de que sanções não funcionam, de que não é possível dobrar Maduro mediante sanções. Michael Shifter, ex-presidente do “Interamerican Dialogue” é representativo dessa posição, e mostra por que é impossível desalojar Maduro no curto prazo e como, no longo prazo, só os próprios venezuelanos podem desatar o nó. (“Maduro the Survivor: Why Washington Must Play the Long Game in Venezuela”, Foreign Affairs, 31/03/2023) 

Até agora a ditadura venezuelana se beneficiou das divisões na oposição. E a oposição perdeu credibilidade depois de anunciar tantas vezes seguidas que Maduro estava prestes a ser derrubado. Juan Guaido, no qual tantas esperanças se haviam depositado em 2019, não conseguiu unificá-la, e Maduro conseguiu desmoralizá-lo como um títere dos Estados Unidos, ajudado pelo próprio Guaidó, que sempre se apresentou como o mais radical dos defensores de sanções contra seu próprio povo. Guaidó, que não conseguiu sequer desvencilhar-se da suspeita de ter apoiado a invasão de mercenários fracassada em La Guaira em 3 de maio de 2020, saiu da Venezuela este ano secretamente, por via terrestre, pela Colômbia, sem trâmites diplomáticos, e acabou por pedir refúgio nos Estados Unidos no último 25 de abril. O erro da sua estratégia política fica mais evidente quando lemos o comentário do economista Luis Vicente León, professor da Universidade Andrés Bello e presidente do Datanalisis, sobre as atuais relações Venezuela-Estados Unidos: “Parece que entenderam [os EUA] que suas sanções atingem menos Maduro que o povo venezuelano”. (Entrevista em Der Spiegel, 10/06/2023)

O futuro da ditadura venezuelana vai depender de como se preparem os oposicionistas dentro do país para possíveis eleições. Deixar de competir por julgar o processo fraudulento tampouco adiantou, mas importa conseguir a fiscalização in loco da campanha eleitoral e da votação. Pressão externa, tanto na ONU quanto no TPI, tem seus limites. Quaisquer que sejam as concessões negociadas, tudo indica que já não existe a possibilidade de que os notórios violadores de direitos humanos voluntariamente deixem o poder para viver tranquilos em algum país que os abrigue, como um dia fez um feroz ditador de Uganda, Idi Amin.

[1] Examinei aqui na “Será?” (25/12/2020) o quanto foram suspeitas e porque são consideradas fraudulentas as últimas eleições parlamentares, de 2020, além dos erros da oposição, em “Venezuela: tudo como dantes no quartel de Abrantes?”.

[2] Analisamos a hiperinflação venezuelana em “Venezuela: a tragédia e a ameaça”, “Será?”, 22/11/2018