Não era raro que eu marcasse um happy hour no bar do Flemings, onde gostava de tomar um single malt ao pé da lareira. O ambiente Eduardiano por certo parecia um pouco kitsch aos clientes do Continente, especialmente aos latinos mais sofisticados, mas isso pouco me importava. Eu sabia que dali, da Half Moon Street, andávamos um minuto e já estávamos na Langan ?s. E, de imediato, até franceses e italianos se rendiam à exuberância daquele endereço alegre de Mayfair – um dos poucos da Londres daqueles dias onde se vivia o ambiente convivial de uma verdadeira brasserie. Até eu que tenho natureza mais reservada, me deixava embalar por toques no cotovelo, tapinhas no ombro e gossips picantes, enquanto os garçons carregavam travessas de ostras, e o ruído das rolhas compunha a alegre percussão do ambiente. É claro que nem todo mundo estava à altura de nosso convite. Normalmente os que faziam jus à sequência completa da programação eram os que já tinham pelo menos uma centena de horas faturadas e a perspectiva de lhes cobrarmos muitas mais em torno de novos recrutamentos. Quando não, ficávamos no Flemings, prescindindo da esticada triunfal. Então, em dado momento, eu olhava o relógio e arqueava as sobrancelhas, alegando que precisava ir, que tinha um longo caminho até Wembley, dando a entender que minha sogra estava nas últimas, o que sempre provoca um olhar congratulatório no ouvinte. Era em tudo isso que eu pensava quando cheguei ao Flemings no final do último inverno antes da pandemia. Só que desta vez cheguei mais cedo, dispensei o drinque e me apressei em ocupar a pequena suíte que ficava logo acima do mastro isolado onde uma bandeira desconhecida tremulava preguiçosamente. Deixei £ 20 na palma da mão de Albert, o concierge, para que, quando Claire chegasse, ele a levasse ao elevador evitando fixá-la nos olhos – um conselho que tive a elegância de não dar. Sentado diante da cômoda, pedi para que subissem uma garrafa de Perrier-Jouët e, sem saber como definir meu estado de alma, deitei atravessado na cama e deixei os olhos passearem pelo teto adamascado. Pobre de mim, o velho John. Feliz de mim, o Dr. Bridgestone, sócio do melhor escritório de caçadores de cabeça do Reino Unido. O que estava para acontecer?

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Eu estava bem adaptada a Londres. No começo, pensei que seria uma habituée do expresso do Canal e que, pelo menos duas vezes ao mês, como previa meu pacote, eu passaria o fim de semana em Paris. Mas não foi isso o que aconteceu! Não que os trajetos pesassem sobre meus 58 anos. Mas porque percebi que os fins de semana em Richmond tinham seus encantos em todas as estações e estava claro que um expatriamento só se justifica se for para vivermos a pleno a realidade do novo país. Se isso vale para a vida nos bairros, o que não dizer da imersão numa cidade fascinante, onde até a comida podia ser saborosa, contrariamente aos clichês que ouvi a vida toda? Mas vamos ao ponto. Quem está no meu ramo há tanto tempo como estou, pode sucumbir facilmente ao brilho individual das pessoas. Sedutores são também suscetíveis à sedução, por mais que a enxerguem. O brilho de que falo não é aquele associado a cativar audiências ou a alçar o indivíduo a fonte do The Economist. Isso até os mais opacos podem ser. Falo da história de vida de quem walk his talk, como eu adorava repetir até ver que a expressão se banalizara. Era o caso de John, senior partner da empresa – sua alma e seu charme. O Dr. Bridgestone, como os clientes latinos o chamavam, vinha de um longo percurso no mundo corporativo. Fora da Imperial Chemical desde cedo e, já nos anos 80, abriu o escritório em Tóquio. Na década seguinte, ameaçado de morte na Rússia, foi para San Francisco, o que levou a empresa à grande virada – quando nos tornamos referência de headhunters no Vale do Silício, junto àquelas empresas refratárias a quem não fosse colega de garagem de Palo Alto. É claro que eu ainda saía do liceu nesta época. Quando cheguei a Londres, foi John quem me conduziu pelos labirintos de Mayfair e South Kensington. Falhei quando declinei de um convite para um brunch domingueiro em Knightsbridge, mas tive tempo de me redimir mais adiante, quando disse que ele era um homem fascinante e que um novo amor talvez lhe refreasse uma certa lassidão que se estampava nas olheiras e na barriga proeminente. Nem eu me reconheci quando disse isso, admito! Só posso atribuir a que, arrependida da distância que eu tentara marcar, de repente quis mostrar a ele que era acessível. Por trás do homem blasé, vi surgir um John amoroso. Mas é claro que o caminho não foi assim tão linear.

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É estranho, mas desde uns bons anos antes da morte de Susan, nós não tínhamos qualquer afinidade na cama. Por que continuamos juntos, se dinheiro não era problema? Não sei. Mas sob pretexto da apneia, já vínhamos dormindo em quartos separados e não havia nada nela que mexesse comigo, afora o companheirismo e a sensação de plenitude que nos davam as compras de Natal na Harrod´s. É pouco, convenhamos. Depois, durante o período que me pareceu indecente levar uma mulher para a casa que tinha sido nossa por 33 anos, inclusive quando morávamos fora de Londres, fui me acostumando à ideia de que a vida sexual tendia a entrar em hibernação absoluta. Chegando perto dos 70, adiando como podia a aposentadoria com funções honoríficas e não-executivas, relaxei com os exercícios e deixei que a gordura ganhasse espaço. Não fosse Abe, o camiseiro da Harvie & Hudson, talvez eu nem tivesse me dado conta dessas transformações – até onde eu não significasse um peso para o NHS. Então apareceu Claire. No nosso ofício, seduzir é fundamental. Como convencer um executivo de alto nível que ele corre risco de se fossilizar se não aceitar a oferta que você lhe faz – muitas vezes não tão tentadora quanto ele merecia? Saí com Claire algumas vezes. Envolvi-a na minha agenda profissional, pedindo a presença dela até em programas que gravei para a BBC sobre os anos áureos em Hong Kong. Senti que o jogo se inverteu no dia do aniversário dela. É evidente que eu sabia da data porque em 2019, ela seria comemorada pela primeira vez no salão de chá da Fortnum & Mason. Todos estavam convidados para um brinde no entardecer. Ocupado com preparativos profissionais que naquele dia me pareceram importantes – e talvez me forçando a criar uma ruptura, uma situação que a frustrasse até para testar a reação -, não compareci nem me justifiquei. Naquela noite, enquanto esquentava uma sopa de ervilha na cozinha, recebi o mais inusitado dos vídeos caseiros. Não, não é o que vocês estão pensando. Na nudez de um quarto isolado, a câmera focava aquela linda fêmea com um inconfundível ar de Emma Bovary. E o que dizia Claire? Que uma mulher sabia perfeitamente quando estava perdendo importância aos olhos de um homem. Que meu distanciamento na data a tinha ferido e que, de alguma forma, eu lhe arruinara o dia.  Nas fotos da confraternização que circularam na rede do escritório, uma comissura nos lábios denunciava que ela tinha acusado o golpe. Alguma coisa teria que ser posta à prova depois disso.

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Um dia John me chamou para que nos encontrássemos no seu hotel favorito. Não me escapou que ele vinha testando meus limites. Não me escapou sequer que ele estivesse me manipulando com aqueles ares de quem estava só no mundo. Como subestimar um homem de quem se dizia ter precisado fugir da Rússia por ser um agente de elite do MI6? E que já o era antes de morar na China – talvez até desde a época em que cintilava no eixo Oxbridge? Who the fucking cares? – como eu adorava dizer nos meus inícios. Cheguei ao hotel pontualmente e deixei o concierge melífluo me levar ao elevador. Do que teria valido dizer que não era tão difícil achar o caminho? Dei duas batidinhas na porta e tive a impressão de que ele arfou caminhando até a porta. Não seria o primeiro asmático no meu currículo. Pensando bem, jamais tínhamos dado algo minimamente parecido com um beijo de verdade, embora nossos lábios tivessem se tocado em despedidas à porta do metrô Green Park, e outra vez à saída da Hatchard´s, quando fomos percorrer as edições bilíngues de Shakespeare. No fundo, eu tinha alguma expectativa de que aquela minha versão de urso siberiano, de espião vindo do frio, de agente chique em Kowloon e confidente de Chris Patten pudesse se traduzir em alguma virilidade. John estava longe de ser feio, mas, visivelmente, estava mal-cuidado. Mesmo assim, ficasse ele dando voltas em torno do pote, eu já tinha pensado em fazer uma abordagem mais francesa, digamos assim. Entraria no banheiro e sairia de lá nua. Minha ansiedade e minha autoestima não suportariam uma reação que não fosse de desejo ardente. Certamente não viria dele uma ereção equina – meu sonho inconfesso. Mas, mesmo para um inglês de linhagem, que houvesse lust and desire. No entanto, o que eu vi ali? Para meu espanto, fire and passion. Mais a segunda do que a primeira. Quase nivelados pela altura, me olhando nos olhos enquanto enchia uma flûte, senti uma espécie de medo solene quando ouvi-o falar com aquele sotaque posh tão dele. Admitiu que temia muito que nosso encontro quebrasse o encanto da amizade. Que sem me dissociar do desejo, ele amava a mulher de camadas múltiplas que adivinhou me habitar desde que eu lhe enviara um certo vídeo cheio de queixume sincero. Que ele não queria que a possibilidade de se aninhar em mim pela eternidade estivesse penhorada a uma tarde de sexo – que, por certo seria boa, mas que não merecia a importância que eu lhe dava. Bobamente, mas com um sorriso raro, ele disse que conhecia bem a reputação de exigência das francesas e que, naquele momento, queria que eu o tivesse conhecido em San Francisco. Mas que, infelizmente, a vida não era assim. Este, até segunda ordem, foi o fim de nosso começo. Ou, melhor dizendo, foi como começou nosso fim.

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Se eu sabia que estávamos longe de um reencontro? Que pergunta! Certamente, não. Por bom que você seja no ofício de ler sinais e de identificar padrões, nada poderia me levar a pensar que poucos dias depois da tarde-noite que passamos no Flemings, quando ainda estávamos sondando o coração um do outro para ver se a bússola apontava um norte, a palavra pandemia começou a circular. E com ela, uma sigla odiosa que combinava cinco tenebrosas maiúsculas, um traço e dois algarismos – que mais pareciam a marca de raticida de minha infância no East End. À luz daquilo, quando o Conselho decidiu que todos nos submeteríamos ao regime de trabalho à distância, se evaporaram os ares juvenis que tínhamos respirado na fase que antecedeu o encontro no Flemings. Foi como se um passo em falso nos tivesse submetido a uma sanção desproporcional. Tivéssemos nós tido a coragem de romper barreiras mais cedo, mesmo à minha revelia – eu que temia qualquer banalização, apesar de não desgostar da vulgaridade na hora certa – , talvez tivéssemos dado lastro a um convívio a dois no meu endereço ou no dela por longos e doces meses. Não foi, evidentemente, o que aconteceu. No fim da primavera, Claire foi a Paris e por lá foi ficando. Além da saúde precária da mãe, a burocracia do ir e vir a desestimulava. E quando variantes batizadas de inglesas começaram a aterrissar na França, a distância se adensou. Franco integrante do grupo de risco, pedi desligamento e fui para Brighton, de onde sonhava com a costa francesa. O que me ficara dela? As curvas da mulher madura e os seios de escultura que me pareceram feitos para mim. Mas também o hálito quente. E as lágrimas que adivinhei por trás dos óculos – que eu fiz questão que ela usasse – quando contei, rendido, que era um amante datado, provavelmente vencido, mas que, o que quer que nos ocorresse, eu era grato ao destino por tê-la tido ali comigo. Que ela representava um presente extemporâneo: a mulher – de tantas – que eu teria gostado de ter tido ao meu lado desde jovem, antes que o corpo vergasse face ao descaso e aos anos. Naquela hora, eu senti que ela também pensava que não teria sido má ideia ter me conhecido mais cedo. Que ela teria sido boa companheira de andanças. Ao lado dela, eu teria caminhado pela sombra. Porque, desde aquele vídeo que eu abrira na minha cozinha, quase entornando a sopa de ervilha em lata, alguma coisa me disse que tinha sido por ela que eu tinha esperado uma vida. Mas que, ao mesmo tempo, uma força abissal estava para nos separar. Quando deitei atravessado na cama do Flemings, nos minutos que antecederam a chegada dela, eu, John Bridgestone, sabia que o sublime estava a caminho. O que restou? Deplorar que tenha durado tão pouco.

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Querido John, espero que essa mensagem o encontre em boa saúde a bons espíritos. Espero também que a aposentadoria esteja trazendo a paz necessária para que afinal bote na tela o que você tanto tem a dizer. Acredito que o livro vá estourar no cinema, muito embora esses tempos estranhos nos façam duvidar da sobrevivência das artes de fruição coletiva e presencial, começando pelo futebol. Enfim, não é hora de intelectualizar. Como você pode imaginar, quando Londres me parecia mais interessante – e sua entrada no cenário não foi fortuita -, me senti abatida por um míssil. A volta para casa me pareceu tão banal quanto inevitável. A saúde de minha mãe se estabilizou dentro do possível e a grande novidade foi a reaproximação com Gérard, meu ex-marido, uma aposta que eu tinha dado como perdida. A necessidade de eleger um domicílio que não me matasse de tédio numa Paris sem alma, fez com que eu aceitasse o aceno que ele me fez para passarmos uns tempos perto de Honfleur, na propriedade da irmã dele. Não era minha casa, certamente, mas a pandemia fez com que ficássemos menos exigentes com a forma e mais atentos à essência. Em dado momento de sua declaração no Flemings, com o queixo apoiado na minha barriga, eu também senti que gostaria de ter te conhecido mais cedo. Que nossa sintonia datava de muito antes de nos descobrirmos fisicamente. De quantas bonecas se compõe uma matrioshka? Oito, dez, sei lá eu. Foi mesmo uma pena que não tenhamos passado quiçá da segunda. Mas me conforta saber que tinha havido no planeta sim um homem feito na medida para Claire Mauger e que, contra qualquer probabilidade, ele se chama John Bridgestone. Amei outros homens, você sabe. Dos titulares da vida, Gérard por certo é o que menos apela à mulher que me tornei. Não duvido que um dia me deixe por uma 15 anos mais nova, para regular bem com ele. Mas pouco a pouco, me acostumei a ele de novo, sentindo aquele abraço desengonçado como um porto pequeno, mas seguro – onde se pode jogar a âncora. Por estranho que pareça, nosso convívio curto e intenso me fez aceitar melhor as coisas que eu já não vinha suportando mais nele, dois anos antes de sair de Paris, quando nos separamos. Hoje aquela voz gutural, as sucessivas menções à vontade de Deus e a aversão às conversas essenciais se tornaram mais suportáveis, quase indolores. De Honfleur, sabendo que você cochilava de olho no horizonte e tinha um pensamento para mim, passei a encarar esse período com serenidade e resignação. Sei que não era para ser assim, mas me adaptei, me reinventei. Como você mesmo disse, da única vez que o percebi cínico sobre o amor: Who has a woman has an eel by the tail. De minha parte, permaneço fiel ao hino que ornou nosso idílio juvenil e que me representa na minha melhor versão: “Which pets are known, To never show their claws?, Which pets are prone, To hardly any flaws?, To which pets do the others, Tip their hats?, Naturellement! The aristocats” Você foi doce e isso não vou esquecer. Até um dia e se cuide bem, Claire.