Almoço da Revista Será? 11o ano

Almoço da Revista Será? 11° ano

03 de dezembro de 2023

Ao escrever a data desta crônica, 3 de dezembro de 2023, tomei um susto. Falta menos de um mês para se acabar o velho 2023 e entrar o novo 2024. As melhores folhinhas eram aquelas em que o ano velho era um velho de verdade, corcunda, com um pé na cova, e o ano novo era um bebê Johnson’s. Na passagem de 1980 para 1981 estávamos no Guarujá: minha pequena família, eu, Zé Hamilton, Miguel com 4 anos, Pedro com 1 ano, e uma amiga do peito, a Flora. Aquele era o primeiro peru que eu preparava, confiada na propaganda da Sadia, e esperando um apito do peru avisando que estava pronto. E o peru não apitava e a fome só aumentando, que as castanhas e que tais não enchem barriga de ninguém, e o ano novo ameaçando chegar, quando, vindo do quarto onde dormia, chega Pedro na sala, só de fralda, com o andar trôpego dos bebês quando acabaram de aprender a andar, despertado certamente pelos primeiros fogos.

Chegava ali na sala o Ano Novo novinho em folha e nós rimos muito, que o teor alcóolico já estava elevado. E a história do apito do peru era um mal-entendido, e são precisamente as coisas que dão errado, as que ficam na nossa história familiar, aquelas histórias que unem como goma arábica os laços de família, mesmo quando ela já está tão esgarçada…

Essas duas frases acima são bem aquilo que se costuma chamar “nariz de cera” de um texto. Uma conversa fiada antes de entrar no assunto. O certo seria simplesmente cortar o nariz de cera e a crônica começaria no parágrafo seguinte. Mas gostei desse nariz e pronto, vai junto.

Adoro receber amigos em casa. Sinto-me na pele de Mrs. Daloway, em uma escala mais pobre, tropical. Os preparativos. Adaptar o espaço da sala de estar para acomodar a primeira roda de conversas. Como a mesa é baixinha e ali serão servidos queijos, presuntos e pães, sem a formalidade dos talheres nem da louça, fosse no Japão, o mais apropriado seria nós todos sentados no chão, pernas cruzadas em posição de Ioga… Não, dona moça, esqueça logo essa ideia estravagante. Pense na idade de seus convidados de hoje. Com uma única exceção, todos setentões. Sem práticas nem costumes nem dobradiças orientais.

Num certo momento, quando todos já haviam chegado e principiavam a beber, os que bebem, pois dois estão na água de coco um e no charuto o outro…

A Mulher do Sétimo Andar tem seus “salões” abertos a qualquer fumaça. E a de charuto lhe traz a doce lembrança dos almoços em sua casa de São Paulo. Os almoços domingueiros, sem cozinheira em casa, nós dois na cozinha. A preparação antecipava a chegada dos convivas. Num desses almoços, lembro que celebramos ali mesmo na cozinha, um brinde com o restinho do vinho que não entrara no molho do macarrão, celebramos, quem sabe, o terceiro casamento, sem data fixa, aqueles momentos em que sentimos que estamos em outro ciclo da vida de casal, que não é mar de rosas para ninguém, e eram momentos de uma felicidade cujo tamanho a gente só avalia   (pois a felicidade tem tamanho, sim senhor) depois que se passaram muitos anos.

Desculpem, saí do assunto de novo. Num certo momento, em que todos estavam distraídos o suficiente uns com os outros, já passados os cumprimentos e tendo cada um escolhido o lugar para se sentar, tomei do celular e fiz umas fotos e o melhor: um pequeno vídeo com os personagens descontraídos. Nenhum se deu conta da filmagem. O som fica difícil de captar, posto serem conversas paralelas, como a dividir ao meio a atenção dos personagens. Um deles olha na direção da anfitriã, o único a se dar conta que está sendo filmado, para elogiar o sururu servido de entrada, com farinha e molho de pimenta.

Sábado é o dia em que gosto de receber, porque é quando posso dispor da cozinheira desde a sexta feira. Neste dia, véspera, conto com Flávio, o motorista de Uber que virou conhecido, quase como se particular fosse, para me acompanhar nas compras da feira orgânica, mercado municipal para o sururu, o bode, o coco ralado e as compotas (feitas quase caseiramente em cidades do interior do estado), passar na padaria Augusta, finalmente, na Casa dos Frios para o bolo Souza Leão. O maravilhoso bolo Souza Leão feito da massa da mandioca, perfeito para acompanhar o cafezinho.

Um dia, já faz tempo, ao perceber que Edinha não gostava de uniforme, e terminava usando deles somente a touca (não posso deixar de lembrar uma imagem construída pela astúcia literária de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, das índias vestidas de noiva e que, mal acabada a cerimônia do coletivo casamento feito pelo missionário jesuíta, saíam à praia, tiravam toda a roupa e caminhavam nuas em pelo, apenas com véu e grinalda na cabeça), ao perceber isso, passei a fazer vista grossa e deixo Edinha se vestir como gosta. Afinal, aqui ela cumpre com competência e gosto o papel que lhe cabe: servir. Mas na sua comunidade, num beco estreito de Barra de Jangada onde não entra carro, ela é dona Dinha, vó Dinha, aquela que nunca negou a ninguém um prato de comida. Uma legítima descendente indígena de pele escura e cabelos negros escorridos, com a nobreza de uma matriarca.

O sábado de manhã, enquanto Edinha está na linha de montagem da cozinha, eu circulo na sala preparando o ambiente. O funcionário do condomínio traz uma mesa e duas cadeiras. Caberá todos sentados às mesas; mesmo apertadinhos, todos sentados com prato na mesa e não no colo.

Gosto dessa preparação. Alguns objetos saem da sala para o quarto de hóspedes para ceder espeço aos pratos, talheres, comidas, bebidas, gelo… É como se estivesse preparando o cenário para uma peça de teatro que vai acontecer. Ontem percebi que sempre mudo um pouco o cenário, como a se adaptar aos personagens que atuarão na peça. O bom é que esse teatro não exige enredo nem ensaio. É de improviso, como as boas rodas de choro.

E hoje, the day after, eu me pergunto: por que será que gosto de receber? Acho que Freud explica. Dois homens importantes na minha vida, meu pai e meu marido, tinham imenso prazer em receber em casa para uma comida. Não tenho fotografias de família espalhadas pela sala, como é de costume. Apenas no meu espaço sagrado, o Peji, junto com divindades católicas e Iorubás, coloquei uma foto de meu pai, uma de minha mãe e uma de meu marido, os que já se foram. Na fotografia do marido, ele está sentado na poltroninha de lona de cineasta que tanto gostava, na varanda rente ao jardim, após um almoço domingueiro. Fuma um puro cubano num dia ensolarado de outono.