Varsóvia
O enorme prédio da rua Emilii Plater abriga tanto residentes quanto forasteiros, que ali chegam para uma ou mais noites. A grande vantagem dele, na falta de contar nem com conservação adequada nas áreas comuns nem com bons elevadores, é que pode-se fazer reserva online para um quarto, e ele está bem próximo da estação de trem da capital. De mais, chegando ao fim da rua, lá onde a Emilii Plater cruza com a Twarda, os becos nevados levam à sinagoga Nozyków, a única que sobreviveu intacta à guerra, numa cidade que contava dezenas delas. Fabio conhecia a região porque certa vez, numa das primeiras viagens que fizera à Polônia, já se hospedara num bom hotel na Grzybowska. Lembrava bem que de lá varrera toda a vizinhança e muito além, indo à pé até a lendária rua Mila. Com a chegada de Tânia, iriam ter com o casal de amigos que os acompanharia até o sul, embora ela tivesse dito que preferia que eles não viessem, que confraternizassem os quatro em Varsóvia, mas que viajassem os dois a sós, Fabio e ela, para não forçá-los a fazer uma viagem que talvez não quisessem, apenas por senso de hospitalidade. “Eles falam polonês, estão vivendo aqui há um bom tempo. E depois, têm muito mais experiência do que nós em caminhos nevados.” Mas isso ficou para ser decidido mais adiante. Fabio abriu a janela dupla e enfrentou de agasalho leve o frio que vinha da rua. Às quatro da tarde, aquele endereço era o epicentro da vida da capital. Por ali chegavam os bondes que vinham do boulevard Marszalkowska e despejavam centenas de donas de casa sisudas e apressadas nas imediações do Palácio da Cultura, o imenso prédio estalinista que domina a cidade. À porta do edifício onde estava hospedado, uma velhinha se escondia atrás de uma bateria de balas, cigarros e garrafas de vodca, e atendia por uma brecha minúscula, feita sob medida para que por ali não entrassem as friagens perigosas. No dia seguinte, Tânia chegaria e Fabio pensou por um momento em fazer como os poloneses e comprar flores para recepcioná-la no aeroporto. Mas sendo ela uma mulher prática, ele temia ouvir: o que você quer que eu faça com isso, meu caro? A depender da lua, ela era bem capaz de responder assim. Então, desistiu da ideia e observou a neve que caía fazendo piruetas. O céu era baixo, e as nuvens refletiam a massa de luzes compacta. Pareciam saturadas e prenhes, quase empachadas, necessitadas de se desfazer. E então mais e mais neve caía, alguns flocos em espiral ascendente, como nas velhas pipoqueiras de interior.
Lublin
“Não entendo porque você quer ir a essa cidade. Ela nada tem a ver com o que estou procurando. Além de ficar numa contramão, quase na Ucrânia, se duvidar na encruzilhada com a Bielorrússia, o que pode me acrescentar, Fabio? Nada, acho eu. Mesmo porque nada tem a ver com meus pais ou com meus avós, sequer com os meus bisavós. Admito que possa ser bonitinha como você diz, e essa viagem de trem não me desagrada de todo. Só que não vejo muito sentido nisso tudo, desculpa.” Fabio nada comentava. O que dizer se sabia que os fatos lhe dariam razão? De vez em quando, levantava do banco sobreaquecido para esticar as pernas no corredor. O espetáculo de inverno pode ser tão belo que mesmo poloneses escolados em décadas de paisagens alvas se maravilhavam com o panorama que desfilava pelas janelas a vertiginosa velocidade. Então, eles abriam os banquinhos dobráveis do corredor, colados à fuselagem do vagão imenso, previstos para os dias de superlotação, e lá ficavam. A depender da vontade de Tânia, já deveriam estar chegando a Lódz, o epicentro da curiosidade que a movia. Mas ele sabia o que estava fazendo. Em Lublin, tinha previsto uma visita ao campo de concentração de Majdanek. Depois desceriam de carro até a região que ele mais queria ver, passando ao largo de Frampol, Bilgorai e Zamosc, de que tanto gostava. “Já entendi tudo. Você quer mergulhar na Polônia de Isaac Singer, não é?” Este não era um palpite de todo errado. De que Polônia Fabio mais gostava, afinal? Talvez de todas. De Gdansk, no Báltico, à Cracóvia, também tão imponente. “Você precisa conter a ansiedade, Tânia. Vamos com calma. Você não tem dormido bem. Desde o começo a gente sabia que este país iria mexer contigo de alguma forma. Eu pelo menos já contava com isso. Estou tentando ser solidário à minha maneira. Nem quero que você passe ao largo da dor, nem que ela tome conta de você – o que não deverá ser o caso, mesmo quando formos aos locais mais horripilantes. O estresse a que me refiro é difuso. Ele não está diretamente vinculado à visão de câmaras de gás. Ele tem a ver com um sentimento de perplexidade que é maior do que sua vontade. É esse sentimento que ainda provoca repulsa à Polônia em milhões de integrantes de seu povo, como você gosta de dizer. E que pode se manifestar até em irritabilidade, sabia? Portanto, não estou preocupado com o que você acha de mim. Eu estou preocupado com o sucesso de sua missão.”
Zamosc
“Eu juro que não saberia dizer a razão, mas foi ali naquela praça nua que tive meu momento culminante naquela viagem. Ela nada tinha do que procurávamos, ou pelo menos do que Tânia queria mais ver. Na verdade, fazia tanto frio que ela estava vazia. Por ali não passava sequer uma alma. Passeamos sob as arcadas feitas por arquitetos italianos e recebemos indicações no café vizinho à sinagoga que poderiam ser pertinentes ao universo de interesses dela, se fosse um pouco mais cedo. Mas era tarde e ainda havia estrada pela frente. Tínhamos entrado em Zamosc com algum atraso. Isso porque a dois quilômetros do acesso principal, a caminho do cemitério, um cortejo fúnebre inusitado percorria o acostamento. À frente, um carro funerário impecável – com os dizeres Memento Mori pintados nas portas – seguia em marcha lenta. De um alto-falante acoplado no capô, vinham orações em polonês. Num primeiro pelotão, um homem enorme carregava uma cruz de madeira que parecia pesadíssima bem em frente a seu rosto, o que deveria demandar uma força descomunal dos braços. Ao lado dele, dois urubus, na acepção de Dickens quanto ao ofício de Oliver Twist, quando ele acompanhava os féretros para embelezá-los. Atrás, vinha a família em caminhada abnegada, determinada a chegar ao cemitério antes do anoitecer. Em se tratando da Polônia, não podia faltar um sacerdote envergando uma Bíblia com ar contrito. Ainda não estava acertado onde poderíamos dormir naquela noite e a total hipoteca de Tânia ao mundo digital impregnava o ar de uma tensão extra. Para ela, e isso eu só vim a perceber naqueles dias, as coisas só existiam, só se tornavam palpáveis, se confirmadas por sites e navegadores. O mundo da intuição estava morto para aquela mulher que, na verdade, nunca fora tão vivaz. Mas de repente, ali na praça de Zamosc, tinha sobrado do Natal um toldo bem no meio do jardim, sob o qual estivera instalado o presépio. No caminho que ia das arcadas àquela espécie de barraca, havia luzinhas chinesas às centenas, quase todas ainda vivas e bem acesas, acopladas a centenas de metros de fio verde. Era como se fosse um parreiral em que as guirlandas eram os cachos de uva. E havia um percurso a percorrer. Tânia estava bem agasalhada, e levantou o capuz para proteger a cabeça. A parca era cor de vinho e ela andava a passinhos apressados como se fosse uma criança que brincasse na praça. Era uma forma de espantar o frio e ativar a circulação nas pernas, além de evitar escorregões no chão batido e deslizante. Então eu comecei a persegui-la. Como se quisesse alcançá-la para dar-lhe um grande abraço por trás. Como um pai que agarra um filho e diz te peguei, e ambos explodem em risadas. O certo é que ela entrou no jogo. Era lúdico, nada tinha de digital, mas aquilo me emocionou. Imaginei naquela hora o que aquela praça já tinha visto de atrocidades. Parentes distantes dela, oriundos de um pouco mais ao sul, um dia podem ter ali visto as últimas paisagens da vida. Emocionou-me vê-la ali brincando, uma mulher que logo terá 70 anos.”
Sandormierz
Já era bem tarde. Ou pelo menos assim parecia, ainda que o relógio do carro marcasse apenas oito da noite. O céu não tinha uma nesga de lua e os faróis iluminavam camadas de neve no acostamento da estrada apertada, neve esta que devia ter sido removida a pá de trator alguns dias antes. As temperaturas invernais impediram que virasse água. Tanto melhor porque pelo menos a pista estava seca. Não há perigo que se compare ao frio subzero quando ele forma uma fina camada deslizante, dessas sobre as quais os carros patinam e se desgovernam, e o motorista não sabe se deve frear para evitar uma colisão, ou se deve tentar controlar a situação na habilidade ao volante. “Que céu preto, não há uma estrela para consolo”, comentou Tânia. “Diminua a marcha e corte as luzes por três segundos”, sugeriu Fabio. Ela atendeu e ambos se assustaram. Não se via coisa alguma, sequer os olhos faiscantes de uma lebre assustada. Porém…”Você viu umas lanternas de carro mais adiante, lá na frente?”, disse ela mais refeita. “Vi. O que quer que seja, está perto da ponte sobre o Vístula.” Tânia nada comentou. “Russos e alemães aqui travaram uma batalha crucial. Em Sandomierz tem 12 mil russos enterrados num cemitério militar.” As luzes vermelhas se aproximavam e Tânia parou atrás de um imenso caminhão com placa da Lituânia. “Você vai lá ver o que está acontecendo?” O Vístula estivera mais belo em Varsóvia em cujas margens tinham passeado, bem perto do estádio, desde o centro Copérnico. Agora só se via a ponte. “Trave as portas e tente ver rotas alternativas no GPS, Tânia. Vou ver se é caso sério. Se for, temos ainda como contornar porque não há ninguém atrás. Se chegarem mais caminhões, aí ficaremos emparedados.” Apertando o cachecol, Fabio caminhou até onde os motoristas confabulavam, perto das luzes azuladas de ambulâncias e de um carro de bombeiro. Então soube que para carros pequenos havia uma alternativa por uma ponte menor, a poucos quilômetros dali. Era o caso deles. Já os caminhoneiros estavam desolados, mas o que podiam fazer? A boleia de um colega desaparecera no rio gelado depois de um derrapamento. A carroceria ficara adernada na cabeça da ponte. “Já achei o caminho. Faremos uns oito quilômetros para chegar ali na frente. Estou louca para chegar porque a cabeça está começando a doer.” Fabio anda disse: “Sorte nossa. Muita sorte que logo mais estaremos tomando uma sopa de tomate. Os caminhoneiros dormirão no frio.”
Última viagem
Nem em sonho Fabio imaginava que Tânia morreria pouco tempo depois daquela viagem. Quanto anos se passaram? Menos de dois. A morte súbita em mulheres lhe parece até hoje uma espécie de usurpação de uma triste prerrogativa masculina. Mulheres não são feitas para morrer de repente, salvo por acidente. Dificilmente de um mal súbito, de qualquer forma. E este foi o caso dela. Tânia, como a maioria das mulheres, ia ao médico regularmente – até para saber o que havia de errado, já que não estava se sentindo mal em lugar algum do corpo. Onde já se viu? “Não era bem assim. O aneurisma estava lá há muito tempo, era como se ela tivesse uma bomba na cabeça. Mas não deixa de ser estranho que nunca tenha se queixado de nada”, disse o irmão dela. Fabio ainda passou bom tempo se perguntando se havia alguma correlação entre a Polônia e a eclosão do problema. “Você deve estar brincando, não é? Eis uma pegunta de uma ignorância solar, se me permite falar assim, meu caro. É claro que não. A menos que ela tenha feito esportes radicais por lá. Mas não acho que este tenha sido o caso. E depois, jamais o problema levaria tantos meses para se manifestar”, disse o médico. Só Fabio sabia o quanto o metabolismo dela se ressentira naqueles dias da visão de umas poucas coisas que a marcaram. Em tempos idos, a emoção teria sido mais intensa, mais incontida, mais do feitio dela e da família, que se jactava de emocionar-se até com um parto de tamanduá-bandeira. Naqueles dias, porém, já idosa, Tânia processou de forma mais contida as emoções, sem direito a seu tradicional nariz vermelho de festas, enterros e shows musicais. O que ela viu, e mesmo o que mais a impactou – não foi Auschwitz, senão Chelmno, perto de Lódz -, ficou lá dentro, encapsulado, e tomou forma apenas de pequenos arroubos de temperamento que, na verdade, não duraram muito. Depois houve a retomada da vida. Fabio e Tânia haviam sim feito planos para a primavera e até para o verão seguinte. Era como se prevalecesse a convicção de que, bem ou mal, a vida só tinha a ganhar se um tivesse o outro ao lado, ao cabo de uma longa história de costuras mal alinhavadas, mas reais. Ela retomou o trabalho com entusiasmo, pensando fixamente na expansão de um pequeno império atacadista. O nascimento do neto só tornou esse senso de missão mais evidente. Não que se envolvesse com a operação comercial e sequer a financeira, que implicava aquela estrutura gigante, que mais lembrava um parque temático. Mas era ela quem as desenhava e construía. Disse-me Fabio, então, que ainda teria imensamente a contar sobre Lódz e outras paragens na região de Kielce. Mas para ele também era penoso recordar tudo aquilo. “Teremos tempo para fazer isso mais adiante. É tudo tão recente”, disse com um gesto de quem risca o ar e encerra o assunto. Como sei que ele é de cumprir o que promete, deixamos a conversa por ali para retomá-la um dia. Um dia quem sabe eu também vá à Polônia. Polska, como se diz lá.
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